Um dos mais interessantes escritores angolanos de todos os tempos é sem dúvida Óscar Ribas. Por várias razões: por ter ultrapassado as suas próprias limitações físicas: foi progressivamente ficando cego, e ainda assim escreveu; mas, sobretudo, pela sua acomodação política: foi dos escritores coloniais mais importantes, entre os escritores favoritos da elite política do Estado Novo (apreciado por Salazar, Marcelo Caetano, Adriano Moreira, e muitos outros), vencedor do Concurso de Literatura Colonial, mas nem por isso deixou de ser celebrado pelas letras pós-coloniais, quando a sua obra foi re-editada, e mereceu outras distinções. E o favor que Ribas gozou tanto para uns e para os outros tem que ver com o facto de ter deixado uma das mais complexas obras alguma vez produzidas por um angolano. Em primeiro lugar, e no que acho muito interessante, por revelar todas as patologias de um mestiço em tempo colonial, que Manuel Rui como nenhum outro escritor soube imortalizar em “O Mulato de Sangue Azul”. É o mestiço, no caso de Ribas, que tem um pé na civilização, domina a escrita, e conhece a língua em que escreve como muito poucos portugueses; mas tem outro pé, na “cultura ignara”, no folclore que os seus contos preservam, convencido de que, mais cedo ou mais tarde, o avanço da civilização sobre o continente africano erradicará todas as práticas que tão afanosamente descreve, como a feitiçaria. As dificuldades em classificar Ribas parecem estar patente na introdução, assinada por Irene Guerra Marques, à edição da colecção da União de Escritores Angolanos. Quem lê “Uanga” percebe a ponta de desprezo que Óscar Ribas nutre pelos angolanos não civilizados: estes seres que vivem esmagados pelo feitiço que “negreja com um cortejo de superstições e terror”. Daí a dificuldade de Guerra Marques em explicar como é que um autor do cânone pós- colonial, tenha usado linguagem tão pouco edificante para classificar os da sua própria “raça”. Guerra Marques resolve essa questão teórica que merecia tomos de explicação ao propor que Óscar Ribas vivia em anos de grande repressão colonial, censura, etc., e que para ver a sua obra publica tinha de a escrever de modo a identificá-la com a “língua [e com as expectativas] do colonizador”, e que só assim, Óscar Ribas, pode então ser lido em “função de uma perspectiva revolucionária”. O que me parece interessante na forma como Guerra Marques explica as contradições de Óscar Ribas serve para perceber a própria literatura de Óscar Ribas. O que Guerra Marques faz é criar uma moldura através da qual se pode ler, nos pós-independência, uma obra que em muitas passagens – sobretudo dos primeiros livros do autor – não difere de muito que foi produzido por outros autores coloniais. Mas foi exactamente isso, ou seja, a moldura, que Óscar Ribas fez, como o próprio descreve na introdução do seu “Uanga”. Ribas usou o método de pesquisa etnográfica, pela recolha de contos, anedotas, histórias e folclore. Mas o molde em que as apresenta é o romance. E “Uanga” é tecnicamente um dos mais bem resolvidos romances escritos por um angolano. Ribas, parece-me, acreditava que feitiço era coisa do tempo. Que do mesmo modo que o vapor tinha acabado com a escravatura, e com o hediondo hábito de brancos se fazerem transportar em tipóias carregadas por negros, o progresso e a crença na ciência haveriam de igual modo varrer da mentalidade do angolano a crença do feitiço. E o seu livro é pois um relicário, não do feitiço, naturalmente, que o feitiço não deixou de existir – e praticado por pessoas que conseguem explicar como é que os aviões voam – mas desta crença na civilização. Se Ribas emoldurou as histórias tradicionais angolanas, e Guerra Marques emoldurou Ribas, para que pudesse ser lido, é talvez tempo, quando já entre nós a revolução é coisa de outros dias, de voltar a colocar outra moldura na obra de Ribas: uma moldura que faça justiça não apenas à sua grande contribuição para formação da cultura e literatura angolanas, mas que reflicta as grandes contradições da sua obra, do seu tempo, e do homem que ele foi preso nesse tempo. Um dos aspectos mais interessantes na forma como os angolanos representam (pensam, falam, escrevem) o colonialismo é através de uma dualidade por vezes irreconciliável. Em termos de política, o colonialismo surge como um sistema repressor, ou então pouco havia que justificava a luta pela independência. Mas a nível da memória privada, individual, das práticas do dia-a-dia, das idas ao cinema, nos contos do escritor cabo-verdiano (crescido em Luanda) José Vicente Lopes, das farras nos quintais, do livro sobre música angolana de Marissa Moorman, o colonialismo nunca deixou de ser muito bem recordado. É altura, se calhar, de nos estudos sobre a cultura angolana pré-independência, haver uma visão com mais nuances, como forma de só assim podermos ter do nosso passado uma descrição que vá para além da dicotomia básica.
(Opinião de António Tomás publicada no Novo Jornal de 25 de Março de 2011 - Luanda)
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