terça-feira, 27 de março de 2012

ANGOLA -REVISTA "ÁFRICA 21": CRÓNICA DA TERRA

crónica da terra





Paradoxos
Muito do que tenho procurado expressar sobre os descaminhos da condução do país foi admiravelmente tratado por Mia Couto quando recentemente falava numa instituição de ensino moçambicana sobre a cegueira coletiva e a aprendizagem da insensibilidade
Fernando Pacheco

Disse Mia Couto, entre outros empolgantes temas e por outras palavras, que a maior pobreza de Moçambique era a de ideias e que o país era conduzido como conduzem os nossos  candongueiros» (táxis coletivos), isto é, sem cumprirem as leis e regras do trânsito e sem respeito pelos outros, sejam passageiros ou transeuntes ou condutores de outros veículos.
Ao acompanhar pela comunicação social a visita presidencial à cidade do Dundo, na Lunda
Norte, em 9 de março, recordei Mia Couto e senti-me amargurado perante o que tanto entusiasmava
os jornalistas dos órgãos públicos, ao enaltecerem o que consideraram desenvolvimento nunca visto naquelas paragens.

A Lunda Norte foi o centro da atividade da Diamang, sociedade que tinha o monopólio da produção diamantífera em Angola até quase às vésperas da independência. Todos sabemos o que de mau aquela empresa representou para os angolanos em geral e para a população local em particular. Mas se queremos comparações, temos de saber que a companhia também desenvolveu a produção agropecuária de modo notável do ponto de vista técnico, com base na cultura de arroz (introduzida pelos portugueses com ajuda de ambaquistas ainda no século XIX) e na criação de bovinos, atingindo mais de 25 mil cabeças, fundamentalmente com base na aquisição de gado no sul do país (e não na importação como agora se faz) e com impressionantes índices de aproveitamento dos pastos naturais. Ademais, a cidade do Dundo, uma urbe racialmente segregada, era muito avançada para a época do ponto de vista arquitetónico, com todos os edifícios com um único andar construídos com material adequado às condições climáticas.

A região é o núcleo duro da ação do Partido da Renovação Social, que tem procurado tirar proveito das políticas governamentais ao capitalizar o descontentamento da população pelo facto de não estar a beneficiar dos diamantes, sendo atualmente o terceiro partido em número de deputados na Assembleia Nacional. A estratégia do executivo para reverter a situação, tem-se revelado inadequada. Em vez de fortalecer as instituições e estimular o empresariado e consequentemente o emprego – fiz parte de um grupo de técnicos que propôs há alguns anos ações simples como a transferência das sedes das
empresas diamantíferas que operam na província de Luanda para o Dundo, a reparação das estradas secundárias e a reativação das culturas de mandioca e arroz numa base tecnológica mais avançada –
em vez disso, dizia, o governo optou por gastar rios de dinheiro em projetos sem sustentabilidade, e bastou ouvir na Televisão Pública um responsável chinês sobre as dificuldades logísticas para
se chegar a tal conclusão.

MODELO DESADEQUADO

A visita presidencial permitiu divulgar a nova centralidade da Lunda Norte, inspirada no modelo de urbanização chinês (alguns dos prédios têm 18 andares numa região em que espaço é o que mais abunda) com centenas de edifícios num total de 20 mil apartamentos bque estarão concluídos em 2020.
Não é necessário ser um especialista na matéria para concluir que o modelo é totalmente desadequado às condições climáticas e culturais da região, sem estradas e onde a pobreza e o desemprego campeiam, e adivinhar as dificuldades de combustível para alimentar 27 geradores de 250 a 540 kva. Também foi inaugurado o empreendimento de Cacanda, com um investimento de 29 milhões de dólares, para produzir vegetais, ovos e carne de vaca.

O espaço não me permite alongar-me (já o fiz noutro jornal), mas sou forçado a dizer que não
estou nada otimista em relação a este projeto outro projeto, pois uma vez mais foi ignorada a
realidade local e as lições da história, e poderá vir a ser um insucesso igual a outros. Com este tipo
de projetos, os já quase desérticos municípios da Lunda Norte ficarão à mercê de quem apenas
está interessado na exploração de diamantes.

O que tem isto a ver com Mia Couto? A atual política de desenvolvimento da economia angolana
não petrolífera constitui um conjunto de paradoxos.

Interpretando uma expectativa das elites (criada pelo novo-riquismo e alimentada pela propaganda
que nos pretende colocar ao nível do que se faz de melhor em África e no mundo quando ainda
não resolvemos questões básicas como água, energia e estradas), as lideranças angolanas querem
andar depressa para que Angola seja uma potência emergente (ver edição de fevereiro da África21).
Por isso o modelo chinês é atraente e muita gente acha que prédios altos são um indicador de
poder, enganosamente igual ao dos europeus. Há alguns anos o presidente da República defendeu
que Angola devia aproximar-se nos vinte anos seguintes dos níveis de desenvolvimento da África
do Sul e do Brasil. Não é impossível, mas extremamente difícil, e muito mais se tivermos em
conta a diferença abissal em infraestruturas e recursos humanos no ponto de partida.

Perante a falta de capacidades que os mais avisados reconhecem, a modernização acelerada
de Angola só será possível com recurso a expatriados.
Países como o Brasil e a África do Sul, como outros, só conseguiram chegar onde chegaram
com políticas de imigração ousadas. Ora aqui se revela um dos paradoxos. As elites angolanas não
são suficientemente humildes para reconhecerem as suas limitações, acreditam que não precisamos
de expatriados, e isso explica a confusa política em relação à mão de obra estrangeira e alimenta
a xenofobia. Mas o desenvolvimento que se projeta para a Lunda Norte e para muitas outras regiões
e setores repousa essencialmente na mão de obra estrangeira. Como é que fica?

Quando falo de desenvolvimento sustentável, pretendo dizer, entre outras coisas, e na linha de
pensamento de Mia Couto, que a condução do país tem de ser diferente da dos táxis coletivos,
pois tem de obedecer a regras e a leis de trânsito e tem de respeitar os transportados, pois eles pagam
para isso e também são pessoas e cidadãos.

Ainda vamos a tempo de darmos uma efetiva prioridade ao combate à pobreza no sentido mais
amplo do conceito e de evitarmos a banalização das injustiças, doutro modo cairemos na cegueira
coletiva de que fala Mia Couto, com consequências imprevisíveis.

Artigo de Fernando Pacheco publicado na Revista "África 21" de Abril de 2012


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