por VIRIATO SOROMENHO-MARQUES (DIÁRIO DE NOTÍCIAS)
Somos todos testemunhas de uma tragédia em construção. Com epicentro na Europa, mas com projecção planetária. Tal como no drama clássico grego, os espectadores sabem com antecipação o abismo para onde os personagens principais se movem. Mas as vozes do coro de Sófocles - advertindo do perigo - conhecem o mesmo destino inglório das profecias de Cassandra. Os personagens estão cegos e surdos pelas suas paixões. A sua marcha para a aniquilação parece inevitável.
Angela Merkel corre o risco de ficar na história não por ter destruído o euro e a União Europeia, pois para essa destruição muitos outros contribuíram pela sua imprudência, desmesura, e vistas curtas. Mas Merkel poderá ficar na história por ser a única líder que, podendo salvar a UE, se recusou a fazê-lo. Mais grave ainda, os historiadores do futuro não irão perceber como é que Merkel não foi capaz de entender que ao não salvar a União, a chanceler estava também a ofender gravemente o interesse nacional alemão. O euro é a expressão da forma organicamente entretecida da actual economia europeia. Querer voltar ao marco, ao dracma, ou ao escudo, seria como transformar o euro numa arma de destruição maciça que nos rebenta nas mãos. De todos os europeus, incluindo os alemães.
No Conselho Europeu, Sarkozy poderia repetir, ao ouvido de Merkel, aquilo que, em 1804, Talleyrand comentou a propósito do assassinato do duque d'Enghien, por ordem de Napoleão: "Foi pior do que um crime, foi uma asneira." Em ambos os casos, o de Napoleão e o de Merkel, a asneira é inspirada pela mesma paixão: o medo, um medo sem limites. Para Napoleão, o medo seria o do regresso à monarquia, para Merkel, o medo, partilhado por uma parte da sociedade alemã (incluindo na elite económica, basta para isso ler o que escreve Hans-Werner Sinn) consiste em supor que a emissão de títulos europeus de dívida (os famosos eurobonds) equivaleria a repetir, a uma escala ampliada, a experiência dolorosa da assimilação da ex-RDA.
Em vinte anos, os onze Länder do Ocidente injectaram o equivalente a nove vezes o PNB português de 2007 na economia dos cinco estados do Leste, e os resultados parecem não agradar a ninguém. Sob muitos pontos de vista, o Muro que foi erguido há 50 anos continua a lançar a sua sombra no inconsciente colectivo germânico. Contudo, a alegada semelhança entre o "resgate" da ex-RDA e os eurobonds não resistiria a quinze minutos de conversa com base em argumentos racionais. Mas quem é que alguma vez conseguiu ultrapassar o medo apenas com razão e bom senso? Sobretudo, a forma mais invencível de medo, aquela que parece paralisar Angela Merkel, que é o medo de nós próprios, e das nossas origens.
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