quarta-feira, 5 de maio de 2010

Dá que pensar sobre o rumo que a sociedade vem tomando...

Strawberry fields forever

O homens europeus descem sobre Marrocos com a missão de recrutar mulheres.Nas cidades, vilas e aldeias é afixado o convite e as mulheres apresentam-seno local da selecção.Inscrevem-se, são chamadas e inspeccionadas como cavalos ou gado nas feiras. Peso, altura, medidas,dentes e cabelo, e qualidades genéricas como força, balanço, resistência. São escolhidas a dedo, porquesão muitas concorrentes para poucas vagas. Mais ou menos cinco mil são apuradas em vinte e cinco mil.A selecção é impiedosa e enquanto as escolhidas respiram de alívio, as recusadas choram e arrepelam-see queixam-se da vida. Uma foi recusada porque era muito alta e muito larga.São todas jovens, com menos de 40 anos e com filhos pequenos.

Se tiverem mais de 50 anos sãodemasiado velhas e se não tiverem filhos são demasiado perigosas. As mulheres escolhidas sãoembarcadas e descem por sua vez sobre o Sul de Espanha, para a apanha de morangos. É umaactividade pesada, muitas horas de labuta para um salário diário de 35 euros. As mulheres têm casa ecomida, e trabalham de sol a sol.É assim durante meses, seis meses máximo, ao abrigo do que a Europa farta e saciada que vimosreunida em Lisboa chama Programa de Trabalhadores Convidados. São convidadas apenas as mulheresnovas com filhos pequenos, porque essas, por causa dos filhos, não fugirão nem tentarão ficar naEuropa. As estufas de morangos de Huelva e Almería, em Espanha, escolheram-nas porque elas sãoprisioneiras e reféns da família que deixaram para trás.
Na Espanha socialista, este programa derecrutamento tão imaginativo, que faz lembrar as pesagens e apreciações a olho dos atributos físicos dosescravos africanos no tempo da escravatura, olhos, cabelos, dentes, unhas, toca a trabalhar, quem dámais, é considerado pioneiro e chamam-lhe programa de "emigração ética".Os nomes que os europeus arranjam para as suas patifarias e para sossegar as consciências são ummodelo. Emigração ética, dizem eles.Os homens são os empregadores. Dantes, os homens eram contratados para este trabalho. Eram tãopoucos os que regressavam a África e tantos os que ficavam sem papéis na Europa que alguém selembrou deste truque de recrutar mulheres para a apanha do morango. Com menos de 40 anos e filhospequenos.As que partem ficam tristes de deixar o marido e os filhos, as que ficam tristes ficam por terem sido recusadas.
A culpa de não poderem ganhar o sustento pesa-lhes sobre a cabeça. Nas famílias alargadasdos marroquinos, a sogra e a mãe e as irmãs substituem a mãe mas, para os filhos, a separaçãoconstitui uma crueldade. E para as mães também. O recrutamento fez deslizar a responsabilidade deganhar a vida e o pão dos ombros dos homens, desempregados perenes, para os das mulheres,impondo-lhes uma humilhação e uma privação.Para os marroquinos, árabes ou berberes, a selecção e a separação são ofensivas, e engolem a raiva emsilêncio. Da Europa, e de Espanha, nem bom vento nem bom casamento. A separação faz com quemuitas mulheres encontrem no regresso uma rival nos amores do marido.Que esta história se passe no século XXI e que achemos isto normal, nós europeus, é que parece poucosaudável. A Europa, ou os burocratas europeus que vimos nos Jerónimos tratados como animais de luxo,com os seus carrões de vidros fumados, os seus motoristas, as suas secretárias, os seus conselheiros eassessores, as suas legiões de servos, mais os banquetes e concertos, interlúdios e viagens, cartões decrédito e milhas de passageiros frequentes, perdeu, perderam, a vergonha e a ética. Quem trata assimas mulheres dos outros jamais trataria assim as suas.Os construtores da Europa, com as canetas de prata que assinam tratados e declarações em cenários deouro, com a prosápia de vencedores, chamam à nova escravatura das mulheres do Magreb "emigraçãoética". Damos às mulheres "uma oportunidade", dizem eles. E quem se preocupa com os filhos? Gostariam os europeus de separar os filhos deles das mães durante seis meses? Recrutariam oseuropeus mães dinamarquesas ou suecas, alemãs ou inglesas, portuguesas ou espanholas, para iremdurante seis meses apanhar morango? Não. O método de recrutamento seria considerado vil, umainfâmia social. Psicólogos e institutos, organizações e ministérios levantar-se-iam contra a práticadesumana e vozes e comunicados levantariam a questão da separação das mães dos filhos numa fasecrucial da infância. Blá, blá, blá. O processo de selecção seria considerado indigno de uma democraciaocidental. O pior é que as democracias ocidentais tratam muito bem de si mesmas e muito mal dosoutros, apesar de querem exportar o modelo e estarem muito preocupadas com os direitos humanos.Como é possível fazermos isto às mulheres? Como é possível instituir uma separação entre trabalhadorasválidas, olhos, dentes, unhas, cabelo, e inválidas? Alguns dos filhos destas mulheres lembrar-se-ão.Alguns dos filhos destas mulheres serão recrutados pelo Islão.Esta Europa que presume de humana e humanista com o sr. Barroso à frente, às vezes mete nojo.

Um excelente texto da Clara Ferreira Alves sobre a Europa.
Dá que pensar sobre o rumo que a sociedade vem tomando
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