As contas foram mal feitas, os dossiês mal estudados, a estratégia mal escolhida. Mas o Governo vai prosseguir no mesmo caminho, porque o que eles nunca reconhecerão é que as suas ideias estão erradas: só funcionam em laboratórios onde se cozinham os MBA
Parece ser chegado o momento de o Governo começar a dar alguns sinais de humildade e reconhecer que a sua receita para sair da crise não está a correr conforme previsto. Dialogar sem preconceitos com a oposição (e dialogar não é apenas ouvir e fazer orelhas moucas), explicar o que ninguém entende e corrigir o que está mal, tudo isso é bem mais importante do que a teimosia de tentar demonstrar a justeza de uma agenda ideológica com que alguns teóricos da economia e da política sonharam anos a fio.
O Governo louva-se de três boas notícias: a descida dos juros nos mercados da dívida, a descida acentuada do défice da balança de transacções e os sucessivos aplausos da troika à execução do programa. Tudo argumentos reversíveis. A descida dos juros é impossível não a ligar directamente à maciça disponibilidade de dinheiro fornecido aos bancos a 1% de juros, promovida pelo BCE. O saldo positivo da balança de transacções (que em si é uma boa notícia) dá-se, todavia, pelas piores razões: uma baixa indiscriminada das importações, quer as desnecessárias ou sumptuárias quer as necessárias para estimular o consumo interno, essencial à recuperação ou para manter a importação de bens e equipamento para as empresas funcionarem. E as boas avaliações da troika sobre o cumprimento do programa de ajustamento não escondem duas ordens de preocupações: o atraso de algumas medidas estruturais (as mais difíceis), como o peso excessivo dos lucros do sector eléctrico sobre a economia ou a renegociação das PPP, e os números assustadores do desemprego e da recessão, muito para lá daquilo que o Governo e a troika tinham estimado.
Mas, no outro prato da balança, há sinais cada vez mais evidentes de que a cura ameaça matar o doente. Isso torna-se evidente quando se constata (e é confirmado pelo novo orçamento rectificativo), que em 2012, tal como em 2011, o grosso do combate ao défice é feito por via do aumento de receitas e não pela diminuição da despesa. Encerrado o combate eleitoral, passado o tempo da retórica fácil e das soluções milagrosas, a nova maioria, uma vez chegada ao poder e na hora de fazer aquilo que tanto apregoou, dá-se conta de uma incómoda realidade: a estrutura da despesa pública portuguesa é dificilmente movível. A verdade é que, tirando excessos evidentes (como o despesismo das autarquias, que o Governo não se atreverá a enfrentar, como já se percebeu), não há muito mais por onde cortar — a menos que o objectivo final seja a liquidação, pura e simples, do Estado, liquidando as suas principais funções. Chega a ser arrepiante recuperar o discurso do PSD e CDS há apenas um ano, na oposição, e confrontá-lo com o que tem sido agora o seu desempenho governativo. Medidas extraordinárias para maquilhar o défice, por exemplo, nunca mais; orçamentos rectificativos eram sinal de absoluta incompetência no controlo das contas públicas; confusão entre dinheiros públicos e negócios privados jamais. Agora, compare-se isto com a nacionalização do fundo de pensões da banca que serviu para ‘cumprir’ o défice de 2011, acrescentando €6000 milhões ao activo; com o novo orçamento rectificativo, que, entre outras coisas, serve para acrescentar os €500 milhões que custa anualmente (e durante uma boa dúzia de anos), pagar as pensões dos novos reformados da banca e de que, pelos vistos, se tinham esquecido; e compare-se com o negócio de reprivatização do BPN ou com a recente notícia do financiamento da OPA do grupo Mello sobre a Brisa, assumido pela CGD (que também assume o empréstimo de €600 milhões ao BPN ‘privatizado’ e depois vai pedir ao ‘accionista’ — isto é, aos contribuintes — que lhe ‘empreste’ por sua vez €1500 milhões para aumentar o capital, desfalcado por tanta generosidade com estas pequenas e médias empresas).
Manifestamente, as convicções ideológicas do Governo não coincidem com a realidade encontrada. E o Governo reage como os coronéis das ditaduras sul-americanas: “mude-se a realidade!” Se o défice não se consegue baixar ao ritmo que se acreditava possível por via dos cortes na despesa pública, vai-se sangrando a economia. Com certeza, repito, que há muitos excessos por onde cortar, muito despesismo público injustificável, muitos e muitos abusos a que tem de se pôr termo. Infelizmente, porém, tudo somado não chega para compensar sequer aquilo que verdadeiramente é ruinoso para o Estado: a expropriação do 13º e 14º mês dos funcionários públicos, por exemplo, traduz-se numa receita equivalente ao custo de ‘privatizar’ o BPN a favor de Américo Amorim e Isabel dos Santos — e ninguém consegue explicar porque não encerraram o banco, simplesmente (sim, eu li a entrevista da secretária de Estado do Tesouro, aqui no Expresso: fiquei exactamente na mesma). Depois, há cortes na despesa pública que são intoleráveis do ponto de vista social, como pagar subsídio de desemprego apenas a metade dos desempregados e tratá-los como se fossem todos culpados ou suspeitos de viverem, por vontade própria, na tal “zona de conforto” de que falava aquele infeliz membro do Governo.
A tentativa de fazer coincidir a realidade com a utopia, através de uma cega aritmética, está a ser feita à custa da destruição do tecido económico decisivo do país, que são as pequenas e médias empresas, os trabalhadores por conta própria, a economia de proximidade. As grandes empresas e os grandes grupos económicos, quando já não tiveram mais contratos públicos para disputar nem mais favores a esperar, vão-se embora e, de qualquer maneira, pagam impostos onde mais lhes convém. Mas o resto, não. A diminuição da receita fiscal, que já se verifica, não é, ao contrário do que pretende acreditar o Governo, apenas um fenómeno conjuntural: a receita vai continuar a cair, na justa medida em que a economia vai continuar a retrair-se e a fuga fiscal se irá acentuar, quando, depois de tão esticada a corda, só restar a escolha entre pagar ou sobreviver.
Porém, sentindo o bafo gelado do fiasco, o Governo vai fugir em frente, num caminho já sem qualquer racionalidade nem sentido útil. Resulta do orçamento rectificativo, que restam ao Governo €18 milhões (!) de folga orçamental para este ano. Mesmo que o petróleo não suba mais, que a recessão na Europa e em Espanha não se acentue, que as exportações não continuem em queda, não há milagre que nos salve. As contas foram mal feitas, os dossiês mal estudados, a estratégia mal escolhida. Mas o Governo vai prosseguir no mesmo caminho, porque, antes de mais, o que eles nunca reconhecerão é que as suas ideias estão erradas: só funcionam em laboratórios onde se cozinham os MBA. Presumivelmente, o Governo irá assim tornar definitivo o que era excepcional (como os cortes no 13º e 14º mês); irá aumentar a receita fiscal, subindo ainda mais os impostos; irá continuar todos os dias, ministro a ministro, nessa penosa e deprimente tarefa de anunciar novos cortes, com o entusiasmo de quem anuncia missão cumprida. Vai consumar o crime antipatriótico de privatizar a TAP (e, para mais, a preço de saldo), vai vender a água, os aeroportos, tudo o que mexer. E vai privatizar um canal da RTP, apenas porque o ministro Relvas quer e não tem de dar satisfações a ninguém, embora já toda a gente lhe tenha explicado que vai ser um desastre para todos.
Volto ao princípio: começa a faltar um exercício de humildade, de que não se vêem sinais alguns no horizonte. No limite, até poderíamos acreditar que o Governo tivesse razão, ou parte da razão, em teoria. Mas nós não vivemos de teorias. Todos os dias há empresas que fecham, famílias que são mandadas para o desemprego, novos pobres encostados à parede. Os portugueses têm sido absolutamente estóicos a aguentar tudo. Mas só uma cegueira irresponsável permite imaginar que se pode levar as coisas até ao fundo do fundo e depois renascer, em paz e alegria.
MIGUEL SOUSA TAVARES-JORNAL EXPRESSO DE 6-04-2012
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