REAVIVANDO A MEMÓRIA - M.SOUSA TAVARES
O fantasma de Paris
A esta luz, temos de ler nas reacções quase histéricas às palavras de Sócrates (exceptuou-se Passos Coelho), uma explicação de outro tipo: o país, civil e político, procura afanosamente um bode expiatório para os males que o atingiram e José Sócrates é o alvo talhado à medida. Pouco importa, aliás, que a crise tenha nascido de fora para dentro e que atinja por igual todo o mundo em que vivemos: encontrar um culpado nosso serve de catarse para nos livrar a todos da culpa colectiva pelos erros que foram exclusivamente nossos. Convém, pois, fazer um exercício que os portugueses detestam: refrescar a memória.
José Sócrates começou a governar em 2005, recebendo um país com um défice de 6,83%, após dois governos PSD/CDS, numa altura em que não havia crise alguma, nem problema algum na economia e nos mercados. Para mascarar um défice inexplicável, os ministros das Finanças desses governos, Manuela Ferreira Leite e Bagão Félix, foram pioneiros na descoberta de truques de engenharia orçamental para encobrir a verdadeira dimensão das coisas: despesas passadas para o ano seguinte e receitas antecipadas, e nacionalização de fundos de pensões particulares, como agora.
Em 2009, quando terminou o seu primeiro mandato e se reapresentou a eleições, o governo de Sócrates tinha baixado o défice para 2,8%, sendo o primeiro em muitos anos a cumprir as regras da moeda única. O consenso em roda da política orçamental prosseguida e do desempenho do ministro Teixeira dos Santos era tal que as únicas propostas e discordâncias da oposição, de direita e de esquerda, consistiam sistematicamente em propor mais despesa pública. E, quando se chegou às eleições, o défice nem foi tema de campanha, substituído pelo da “ameaça às liberdades” (por favor, consultem os jornais da época).
Logo depois, rebentou a crise do subprime nos Estados Unidos e Sócrates e todos os primeiros-ministros da Europa receberam de Bruxelas ordens exactamente opostas às que agora dá a sra. Merkel: era preciso e urgente acorrer à banca, retomar em força o investimento público e pôr fim à contenção de despesa, sob pena de se arrastar toda a União para uma recessão pior do que a de 1929. E assim ele fez, como fizeram todos os outros, até que, menos de um ano decorrido, os mercados e as agências se lembraram de questionar subitamente a capacidade de endividamento dos países: assim nasceu a crise das dívidas soberanas. Porém, não me lembro de alguém ter questionado, nesse ano decisivo de 2009, a política despesista que Sócrates adoptou, a conselho de Bruxelas. Pelo contrário, quando Teixeira dos Santos (o único que nunca deixou de querer controlar o défice), começou a avançar com os PEC, todo o país – partidário, autárquico, empresarial, corporativo e civil – se levantou, indignado, a protestar contra os “sacrifícios” e a suave subida de impostos. Passos Coelho quase chorou, a pedir desculpa aos portugueses por viabilizar o PEC 3, que subia as taxas máximas de IRS de 45 para 46,5% (que saudades!). E há um ano (se não se lembram, consultem os jornais), para viabilizar o orçamento ainda em vigor, mandou Eduardo Catroga reunir-se em longas e dramáticas sessões com Teixeira dos Santos em que aquilo que os separava era garantir um pouco mais de despesa do Estado para satisfazer as bases sociais-democratas.
O erro de Sócrates foi exactamente o de não ter tido a coragem de governar contra o facilitismo geral e a antiquíssima maldição de permitir que tudo em Portugal gire à volta do Estado: os contratos, as empreitadas, os empregos - até as fundações privadas. Quando ele, na senda dos seus antecessores desde Cavaco Silva (que foi o pai do sistema) se lançou na política de grandes empreitadas e obras públicas, escrevi aqui incansavelmente contra as auto-estradas inúteis, as barragens da EDP, um TGV e novos-ricos, um terminal de contentores em Lisboa sem sentido nem transparência alguma, uma nova ponte e um aeroporto para Lisboa que, todos, sem excepção, defenderam. O que me lembro de ter visto, então, foi toda a gente – empresários, banqueiros, autarcas, confederações patronais e centrais sindicais – explicarem veentemente que não se podia parar co o “investimento público”, e vi todas as corporações do país – professores, magistrados, médicos, militares, agricultores – baterem-se com unhas e dentes e apoiados por partidos de direita e de esquerda contra qualquer tentativa de reforma que pusesse em causa os seus privilégios, sustentados pelos dinheiros publicos. O erro de Sócrates foi ter desistido e cedido a esta uninimidade de interesses instalados, que confunde o crescimento económico com a habitual tratação entre o Estado e os seus protegidos. Mas ainda me lembro de um governo presidido por Santana Lopes apresentar um projecto de TGV que propunha, não uma linha Lisboa-Madrid, mas sim cinco linhas, incluindo a fantástica ligação Faro-Huelva em alta velocidade. E o país, embasbacado, a aplaudir!
Diferente disso é a crença actual de que a dívida virtuosa – a que é aplicada no crescimento sustentado da economia e assegura retorno – não é essencial e que a única coisa que agora interessa é poupar dinheiro seja como for, sufocando o país de impostos e abdicando de qualquer investimento público que garanta algum futuro. Doentia é esta crença de que governar bem é empobrecer o país. Doente é um governante que aconselha os jovens a largarem a “zona de conforto do desemprego” e emigrarem. Doente é um governo que, confrontado com mais de 700.000 desempregados e 16.000 novos a cada mês, acha que o que importa é reduzir o montante, a duração e a cobertura do subsídio de desemprego. Doente é um governo que, tendo desistido do projecto de transformar Portugal pioneiro dos automóveis eléctricos, vê a Nissan abandonar, consequentemente, o projecto de fábrica de baterias de Aveiro, e encolhe os ombros, dizendo que era mais um dos “projectos no papel do engº. Sócrates”. Doente é um governo que acredita poder salvar as finanças públicas matando a economia.
O fantasma do engº. Sócrates pode servir para o prof. Freitas do Amaral mostrar mais uma vez de que massa é feito, pode servir para uns pobres secretários de Estado se armarem em estadistas ou para os jornais populistas instigarem a execução sumária do homem. Pode servir para reescrever a história de acordo com a urgência actual, pode servir para apagar o cadastro e as memórias inconvenientes e serve, certamente, para desresponsabilizar todos e cada um: somos uns coitadinhos, que subitamente nos achámos devedores de 160.000 milhões de euros que ninguém, excepto o engº. Sócrates, sabem em que foram gastos. Ninguém sabe?
Miguel Sousa Tavares no Expresso de 17/12/2011
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