quinta-feira, 29 de maio de 2014

EM SITUAÇÕES DE GUERRA A VERDADE ESCONDE-SE

Em situações de guerra, os olhos veem sombras e a verdade esconde-se


por OSCAR MASCARANHAS24 maio 2014


Janeiro de 1991. A Direção do DN tinha-me enviado ao Bahrein para - dito muito pomposamente - "cobrir" a Guerra do Golfo, que fora originada pela invasão e ocupação do Koweit pelas tropas iraquianas de Saddam Hussein. Mais tarde, este conflito ficou numerado como a Primeira Guerra do Golfo, já que se lhe seguiu, uma década depois, um prolongado ataque punitivo ao Iraque na sequência da destruição das Torres Gémeas de Nova Iorque. Foi coisa de triste memória, desencadeada pelas ânsias populistas e eleitorais de uma tríade de históricos medíocres, protagonizada por George W. Bush, Tony Blair e José María Aznar, borboleteados pelo lacaio mesureiro José Manuel Durão Barroso, uma vil e desprezível mancha no orgulho português, padecente crónico do mal de carnes de obedecer para o qual a ciência ainda não encontrou cura para ele nem alívio para nós.
Cobrir a Guerra do Golfo! O mais que poderia fazer seria contar histórias do que os meus olhos vissem, com alcance limitado, e apontamentos de vidas e sentimentos concretos que pudesse descobrir. É isso que pode fazer um "enviado especial" e muitas vezes, ao ouvir a rádio em direto, lamento não se ter ainda inventado a cadeira hertziana que o repórter no terreno possa arremessar à cabeça do pivô que, na tranquilidade do estúdio, e há tanto tempo sentado que já tem o traseiro em forma de pera, pergunta com a maior naturalidade às três da manhã locais: "Então, como é que está a reagir a população da cidade tal aos bombardeamentos da noite? Que dizem as pessoas na rua?"
Três lições colhi dessa "cobertura" da Guerra do Golfo. A primeira e mais sólida foi a de que a minha melhor investigação - de que resultou uma notícia de que, até prova em contrário, terá sido scoop mundial - poderia ter sido realizada em Lisboa, na redação, com apoio de mapas e telefones. Poucos dias após o início do conflito armado, Saddam mandou rebentar os poços petrolíferos marinhos na orla costeira do Koweit, originando uma ameaçadora maré negra. Logo nesse dia, as principais estações televisivas mundiais, com a CNN à cabeça, que imortalizaram esta guerra como a primeira (falsamente) transmitida em direto, difundiam imagens de aves marinhas afogadas em crude ou em esforços desesperados para subirem aos molhes dos atracadouros. As autoridades do Bahrein seguiam, através de fotografias aéreas ou de satélite, a progressão da mancha de óleo, procurando soluções para defender as suas praias. Mas a mancha avançava muito lentamente, pelo que ocorria a pergunta: não havendo jornalistas ocidentais nas praias do Koweit, como eram possíveis aquelas imagens? Um telefonema a um oficial das relações públicas militares norte-americanas, em Dahran, no Norte da Arábia Saudita, bastou para se saber que eram imagens de arquivo de uma guerra anterior, entre o Irão e o Iraque, sensivelmente no mesmo teatro do Golfo e com idêntico derrame de petróleo bruto. As imagens, afinal, faziam parte de uma estratégia de propaganda, para puxar à lágrima e à indignação dos ecologistas norte-americanos que, até à véspera, não aceitavam nem por mais uma que our boys fossem morrer a terras distantes por questiúnculas entre humanos: agora, para salvar passarocos e águas do mar - fogo à peça!





A segunda aprendizagem teve a ver com a capacidade de o homem conviver com a iminência da morte, o que me explicou como se pôde viver cerca de vinte anos em Beirute com explosões diárias por toda a cidade, sem que isso interrompesse o quotidiano de quem tinha de ir trabalhar de manhã e voltar à noite. Logo que começou o conflito armado e voaram scuds iraquianos para os países em volta e os patriots norte-americanos em sentido contrário, as autoridades do Bahrein mandaram evacuar o soukh (mercado tradicional) da capital, Manama. Ao terceiro dia, fui ao local e vi tendas abertas. Um comerciante explicou-me que já tinha percebido como seria a guerra: "apenas" mísseis, nada de "armas pequenas". É que atrás da "arma pequena" está a mão e a pontaria de um inimigo, enquanto um míssil cai onde cai, tanto no soukh como na casa do comerciante, ao alvedrio de Alá. E como o que não tem remédio remediado está - retome-se a vida normal, que não hão de ser só as salamandras a darem-se bem com o fogo!...
A terceira verificação - e isto resolve a questão de saber se a "cobertura" foi feita a partir do Bahrein ou em plena Bagdad sob fogo - prende-se com aquilo que não se vê quando se está perto. Certa noite, encontrava-me tranquilamente a jantar num restaurante com imigrantes portugueses em Manama quando começámos a irritar-nos porque os empregados, em lugar de nos atenderem, estavam à janela, em amena conferência sobre o que viam no exterior. No dia seguinte, soubemos que estiveram a olhar para o único scud lançado pelo Iraque sobre o Bahrein e que havia caído e explodido no mar entre cinco e dez quilómetros de onde estávamos... Grande "enviado especial", que deixei passar um scud debaixo do nariz!
Fiquei com esta convicção: a melhor cobertura da Guerra do Golfo teria sido feita na sala de operações do Pentágono, mas, mesmo aí, só veria o que entendessem mostrar aos jornalistas embedded, que é como quem diz, que partilhassem a cama com os militares. Razão tinha Boake Carter (Harold Thomas Henry Carter), jornalista e comentador norte-americano de rádio da primeira metade do século XX, quando disse que "em tempo de guerra, a primeira vítima é a verdade". É bem certo: em tempo de guerra, os olhos veem sombras da realidade, enchem-se de aparências, deixam escapar evidências - e a verdade torna-se escorregadia e fluida, adaptando-se aos desejos de cada beligerante.
Como lutar contra isso? É essa a questão que levantou B.C., um atento leitor do DN, que me escreveu o seu protesto. "Em 1937", escreve B.C., "o diário espanhol ABC abria a primeira página com uma manchete que ficaria para a História: "Guernica, destruída pelo fogo dos vermelhos." A mentira que ecoou pela voz do jornal franquista embateu na mais dura das verdades. Sob os escombros de Guernica, milhares de mortos e feridos provaram as bombas do nazi-fascismo.
Em 2014, mais de meia centena de antifascistas foram queimados vivos num edifício em Odessa, na Ucrânia, e o DN, acompanhando a tendência geral, trata o assunto de forma vaga e pouco precisa, tentando dar a entender que foi o resultado de uma escaramuça e que todos foram culpados.
Sobre o assunto, pouco me importa que as notícias publicadas sejam da Reuters, da AFP ou da Lusa. Elas foram editadas e publicadas por jornalistas do DN e, portanto, devem assumir a responsabilidade perante a História de estarem a ilibar o nazi-fascismo.
Sempre em últimos parágrafos, a mentira e a manipulação são construídas de forma ardilosa: "Pelo menos 42 pessoas morreram na sexta-feira em Odessa depois de confrontos entre pró-russos e apoiantes do Governo de Kiev"; "Em Odessa, cidade portuária do sul, 42 pessoas morreram depois de confrontos entre pró-russos e apoiantes do Governo de Kiev que terminaram com dezenas de pessoas presas num edifício com ambos os lados a lançarem engenhos explosivos."
Numa outra notícia, sobre um protesto de ucranianos em Lisboa, o autor da reportagem exalta a bandeira vermelha e preta, "que foi usada pela Ucrânia durante a II Guerra Mundial e agora voltou para as ruas como símbolo da liberdade". Por que escondeu o jornalista que essa era a bandeira que usavam os apoiantes de Stepan Bandera que lutou ao lado dos nazis na II Guerra Mundial? Por que esconde a comunicação social que era essa a bandeira que ondeava em frente ao edifício dos sindicatos entre a gente que o incendiou e bloqueou todas as saídas?
A comunicação social cala o que os livros de História falarão um dia: em Odessa, os bárbaros não foram só os que mataram, foram também os que mentiram."
Forte crítica, há que o reconhecer. Mas terá razão? Por aquilo que averiguei, sim e não. Dado ter estado uns tempos forçadamente afastado da leitura quotidiana dos jornais, pedi à Direção um dossiê noticioso sobre o conflito na Ucrânia. Lendo o que o DN tem vindo a publicar e aquilo que outros órgãos de informação de referência divulgaram, fiquei com a clara e reconfortante sensação de que, na imprensa portuguesa, o DN sobressai pela isenção, distanciamento e pluralismo de opiniões e visões sobre um conflito que é um barril de pólvora e que tem sido tratado pela imbecilidade da assim chamada liderança europeia, com o irresponsável máximo Durão Barroso a papaguear o que lhe mandam, do mesmo modo que um técnico de esquentadores com um archote aceso à procura de uma fuga de gás.

O DN tem tido, pelo menos, o mérito de não ser maniqueísta e de não escolher aprioristicamente os bons e os maus, os democratas puros e os empedernidos nazi-fascistas porque, na verdade o que temos pela frente é medição de forças entre várias selvajarias tribais que não desapareceram e são a vergonha da Europa e do mundo.
Não há santos nem patriotas: há máfias, ódios atávicos, prazeres sanguinários, total ausência de humanidade - e uma imensa multidão tremente e agachada, esperando pelos dias da tranquilidade possível.
Podia a cobertura do DN ser melhor? Decerto que sim, mas muito tem feito este jornal na diversificação de fontes, fugindo àquilo que antigamente era uma garantia de rigor e agora não passa de um feixe de difusores pérfidos de desinformação intoxicante e monocolor, as agências noticiosas.
O exemplo dado pelo leitor sobre o significado da bandeira vermelha e preta é um alerta pertinente sobre a necessidade de oferecer mais enquadramento histórico daquela imensa loja de porcelanas onde se saracoteiam elefantes, autóctones e estrangeiros. No meio do analfabetismo histórico dos dirigentes que enfiaram o mundo ocidental nesta alhada sem saída, um bom trabalho do DN poderia constituir um meritório serviço à humanidade.

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