segunda-feira, 10 de setembro de 2012

JÁ LEU ESTE LIVRO? (continuação)

JÁ LEU ESTE LIVRO?

UM LIVRO PARA A SUA MESA DE CABECEIRA

TAMBWE-A UNHA DO LEÃO

de antónio oliveira e castro

uma edição GRADIVA

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Sinopse

De Lisboa a Luanda, seguindo por Paris e por bases aéreas bem guardadas na Rússia e na África do Sul, é uma longa viagem sacudida por geografias contrastantes e pelos solavancos da descolonização e do fim da Guerra Fria. Tambwe – A Unha do Leão faz-se disso e de muito mais. É também o percurso interior de Eugénio, à procura da sua infância e da sua razão de ser numa Angola atormentada pela guerra.

Com uma escrita torrencial e opulenta, o autor descola volta e meia da realidade palpável, circunscrita pelo tempo e pelo espaço, e parte para um universo onírico e simbólico, verdadeiro paraíso perdido, porventura para sempre.

Romance de vida e de morte, só uma partitura de Brahms parece restar como energia redentora quando, na noite tropical, se abrem as portas da prisão de Luanda.

(Pedro Vieira)


(EXCERTO DO ROMANCE TAMBWE-A UNHA DO LEÃO)




"Samarcanda, a histórica cidade da Ásia Central era, na tradição muçulmana medieval, a par de Damasco, um dos mais belos sítios do Mundo; continuava a ser um ponto de encontro de culturas, é certo, mas era agora um caravançarai de outros interesses que não os da rota da Seda. Rasgadas e cobertas de pó, as cortinas do grande palácio para repouso das caravanas ondulavam, agora, com a nostalgia de um tempo distante, de um passado cheio de pregões dos descendentes de persas e turcos, de risadas dos vendedores e compradores em prolongadas negociações, do som de flautas e timbales árabes, do bramido dos camelos asiáticos e dromedários africanos, do relinchar dos cavalos da Mongólia, dos cheiros excitantes da canela e da pimenta, do perfume agradável da resina de benjoim, do aroma a almíscar, da miríade de cores das sedas delicadas vindas da China. Agora, um vento seco e frio acenava às ruas incaracterísticas, tristes, esburacadas, vazias dos sentimentos da euforia dos tempos de Alexandre, de Gesgiscão, de Tamerlão, uivando como que num prenúncio de catástrofe. Polícias corruptos sobreviviam roubando os passaportes aos turistas incautos, transformando a velha cidade, antigo oráculo de fé e afamada tribuna da ciência, num reles moinho rodeado de Quixotes, Sanchos e Rocinantes. O caos



acumulava-se pelas mesas, pelas enxergas e pelo chão; os chamamentos dos muezins à oração, as preces dos xeques nas mesquitas, as canções exóticas nos palácios, moravam nas gargantas ausentes. Do antigo fausto restavam lupanares de prostitutas cansadas, doentes e viciadas em ópio, carcaças de tanques de guerra espalhadas sobre a terra carcomida, e o olhar oblíquo, desconfiado, sem esperança, dos uzbeques, numa amálgama de fim de tudo e princípio de qualquer coisa. Mas, como sabemos, o destino dos homens de Le Renard não era o paraíso desfeito de Samarcanda, o destino reservara-lhes um cemitério de fantasmas e ilusões repudiadas. Da cidade podia-se fugir, a qualquer momento, rumo a Tachequente, a Moscovo, a Paris, a Nova Iorque, a Pequim, a Luanda; da nostalgia da guerra, da excitação do terror, do vício da morte, ficava-se para sempre escravo. Seguindo em frente, por uma estrada que apenas seduzia pelo espectáculo da imponência das montanhas silenciosas como um ermitério, entrava-se em Karshi, uma outra e ainda mais distante cidade feita de pó e desalento. Quilómetros depois, escondida, empoleirada sobre as margens do Amu Dary, nascido nas montanhas geladas do Tajiquistão, ficava a inóspita morada dos neófitos cavaleiros do apocalipse, prosélitos de uma Ordem que, à semelhança dos cruzados e do desejado D. Sebastião, sonhava com a conquista de Jerusalém e a exclusividade do direito de saque para a Europa. É verdade que a maior parte dos homens


arregimentados para a aventura não tinha qualquer estrutura ideológica a suportar-lhes as convicções, não percebiam sequer o apelo heróico de Le Renard , apenas os movia o salário generoso e a promessa de futuras prebendas em Angola.
O sol, tingira as águas cristalinas do Amu Dary com aquele vermelho de fim de tarde. Um tom quieto, breve, intenso e reconfortante, que, para quem está longe do sossego da pátria, se transforma em saudade. À entrada da antiga base militar, a recebê-los, estava um desfigurado e irascível coronel do outrora poderoso exército soviético, tão poderoso que, à semelhança do rival norte-americano no Vietname, não conseguira derrotar a guerrilha dos estudantes de teologia, apesar das batalhas bíblicas entre os novos David e Golias. Conselheiro Militar das Fapla na guerra contra o exército do apartheid, que em apoio da Unita ocupara parte do sul de Angola, o coronel Ivan distinguira-se depois na guerra do Afeganistão. Herói, foi condecorado pelo próprio Babrak Karmal, em cerimónia privada, como recompensa pelo êxito do golpe de Estado que o levara ao poder em Dezembro de 1979.
Ivan Kolesov era um operacional especializado em diversos tipos de armamento, um estudioso de tácticas e estratégias, bem como experimentado artífice na intriga dos sempre honestos jogos de Poder. Apesar de frio e disciplinado, como o são todos os militares que em lugar do afago dos progenitores se agasalham com a dimensão gélida das camaratas das Academias, em vez da compreensão de um abraço recebem a atenção de uma medalha, Ivan Kolesov sofria dos traumas das guerras perdidas contra guerrilheiros miseráveis e analfabetos. Contudo, o desengano que lhe roubava o sono e a fé na Ciência Política fora o fim da União.
Durante a Guerra Fria havia um objectivo a perseguir, a defesa e o alastramento do ideal da Revolução de 1917, agora cumpriam-se ordens ditadas por trânsfugas. A ideologia tinha morrido, os teóricos e filósofos tinham dado lugar à ambição dos financeiros; a saúde garantida, a escola gratuita, tinha sido substituída pela gritaria especulativa das Bolsas, trocando-se o bem real pelo benefício obtido a partir de nada. Tudo se desmoronara à sua volta sem o mais pequeno gesto de resistência, de recusa, de agradecimento, incluindo o seu. Ivan Kolesov era um homem amargo, desiludido, com um desejo oculto de vingança.
Kolesov recebeu Le Renard com uma breve e desapaixonada continência, consciente, apesar das ordens vindas de Moscovo, que nada o obrigava a ele, filho da grande pátria soviética, a apertar a mão de um patife. Dando ordens em russo ao seu ajudante-de-campo, virou as costas ao estupefacto francês, até aí recebido como um fidalgo em todos os locais por onde passara. Atentos, todos perceberam que o convívio não ia ser fácil naquela escola de guerra.
A noite caíra por completo, gelada e ventosa. Reactivada à pressa, a antiga base soviética estava mal iluminada, com parte dos edifícios em ruínas. Desconfortáveis, as camaratas onde se alojavam os recém-chegados, utilizadas como estábulos pelos camponeses e pastores da zona, fediam a excremento de ovelha e cavalo. Apesar de gelado, o ar tornara-se irrespirável. A segurança do aquartelamento, a cargo de um pequeno contingente de soldados uzbeques, indisciplinados e conflituosos, amantes da aguardente a que os russos chamam aguinha, ou seja, vodka, inquietou Le Renard. Nunca, mesmo em território amigo, estas questões, próprias das preocupações dos guerreiros, devem ser deixadas ao acaso; a pior coisa que poderia acontecer a um soldado duro e garboso, medalhado de uma série de campanhas, era ser apanhado com as calças na mão por um qualquer bando de ladrões sem princípios.
Começava mal, algo que correra bem até aí. Le Renard parecia esquecer-se, o que admirava em mercenário experimentado, que à medida que fosse mergulhando na incerteza do abismo a protecção de que gozava se diluiria na nebulosa do poder das Secretas.
Ao contrário da ansiada refeição quente, contentaram-se com a monotonia das rações de combate. Tétrica, a sinfonia do vento, esgueirando-se, apressado, por entre as brechas das paredes, fez com que os mais sensíveis se arrependessem da aventura. Mas era tarde para recuar; qualquer tergiversação naquele quadro perfeito, tão acabado quanto um mecanismo de relojoaria, seria considerada traição e todos nós sabemos como a ética castrense é rigorosa nestes casos. Sem hesitações que a piedade sugere, os duros homens da retaguarda assinariam, de imediato, o documento que colocaria os medrosos no trajecto das balas, só que desta vez com os olhos vendados. São assim as duras leis da família militar e os homens de Le Renard, sobretudo eles, jamais poderiam reclamar da severidade do legislador.
O general André, militar angolano formado em várias e credenciadas academias, coleccionava currículos como quem junta selos, isto é, facilmente, sem critério. Inteligente, culto e ambicioso, julgava-se destinado ao desempenho de cargos bem mais importantes, dentro do aparelho político do Partido que suportava o Governo, que aqueles que até aí lhe tinham sido destinados. Comparava ministros, irmãos de ministros, primos de ministros, amantes de ministros, filhos de legítimas e de ilegítimas, consigo próprio e concluía, amargamente: “Com gente desta, Angola vai para lado nenhum”. Espírito arguto, esgrimindo o conhecimento científico, ora com arrogância ora com humildade, consoante a audiência a impressionar, sempre de acordo com as regras clássicas da retórica, via-se rodeado por homens de senso comum, sem espinha dorsal, mas parentes dos parentes da restrita elite que se tinha apoderado do poder. Não bastava ser capaz, tinha que se fazer parte da intriga da corte, velha maleita do poder, concluía, entre dentes, com raiva impotente.
Não raras vezes, André fora aconselhado pelos que lhe eram próximos, aliados que o viam como trampolim para ascender na hierarquia, a conter-se na formulação de juízos, a moderar a verborreia, a adoçar a acidez de opiniões. Estava a prejudica-los, admoestavam-no. “Tornámo-nos piores que os colonos. Jurámos lutar pela independência para libertar o povo e apenas acabamos por lhe substituir o jugo!”, gritava-lhes, fora de si. "



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