terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Direito à indignação

José E. Moniz, in “CORREIO DA MANHÔ
"Direito à indignação"

Uma mulher, à volta dos setenta anos, espreita os jornais e comenta para outra, mais nova, seguramente sua filha:
– “E lá conseguiram arquivar mais um processo contra o homem...” Responde a mais nova: – 'Quero lá saber...' – 'Como assim filha? O homem é primeiro-ministro. Só anda metido em confusões e toda a gente lhe põe a mão por baixo. Estas investigações das escutas tinham de ir dar a qualquer lado. Arquivem, mas investiguem primeiro. Ao menos isso.' – 'Sabe uma coisa mãe? Não quero mesmo saber nada disso. Está sempre tudo feito. Vocês é que têm culpa, que o elegeram. Eu não...'

Diálogo de fim da manhã, num sábado coberto de chuva, ouvido, indiscretamente, na caixa de um posto de abastecimento de combustível. Duas mulheres, de gerações diferentes, abordando, de forma apressada, o caso mais relevante da actualidade. A mulher mais velha lá acabou por se afastar, com ar conformado, mas não convencido, enquanto a mais nova repetia que não se sentia responsável por nada, dando a entender que não havia votado nas últimas eleições legislativas. Perdoem-me a reprodução desta escuta não autorizada, mas penso que ela não está abrangida pelo segredo de justiça, nem carece do aval do presidente do Supremo e, muito menos, de despacho do procurador--geral.
Citei-a apenas porque ela me parece representar o essencial daquilo que é o sentimento do cidadão comum perante os casos de justiça envolvendo personalidades com alguma relevância na vida pública portuguesa. Escândalos que, pela sua natureza, ganham enorme eco em toda a Comunicação Social, mas que vêem a sua repercussão ampliada, por causa da teia de malabarismos político-jurídicos que ardilosa e empenhadamente os tentam lançar para as catacumbas do esquecimento.
Foi o dr. Mário Soares que, um dia, falou no 'direito à indignação'. A recuperação desse direito, nesta altura, afigura-se-me apropriada, dado que em causa estão questões que se revestem de enorme gravidade e importância. Assisto com perplexidade ao desfile de atitudes e argumentos que estão a enrodilhar a Justiça em Portugal, desacreditando-a aos olhos de todos e desprestigiando os seus agentes, que deveriam ser referenciais de respeitabilidade e de confiança, baluartes essenciais de uma democracia sã e estabilizada, apta a resistir a atropelos e indiferente a privilégios.
Presenciando o filme ‘Face Oculta’, que, há algumas semanas, se encontra em exibição em todas as casas portuguesas, fico surpreendido (apesar da experiência emprestada pela idade) com a forma como actos processuais são encarados, como se ajustam procedimentos e decisões a timings eleitorais, como a Justiça e a Política se embrulham de modo pouco transparente. É à custa de situações como esta que o País cada vez menos acredita na sua Justiça, interiorizando que há tratamentos diferentes consoante se faz parte do lote de ‘poderosos’ ou não. Uma Justiça em dois patamares ou a dois tempos, conforme os intervenientes. Não sou jurista e, por isso, não me vou enredar na teia de argumentações que, mais do que esclarecer, confundem o cidadão, bombardeado, nos últimos dias, com opiniões, as mais desencontradas, sobre a sustentabilidade, ou falta dela, de actos das mais altas instâncias da Justiça portuguesa.
Muito menos me vou pronunciar, nesta altura, sobre a ousadia espelhada em declarações de políticos que querem, novamente, mudar a lei do segredo de justiça, depois de nela terem mexido há apenas dois anos, como se o País fosse uma coutada em que as leis se fazem e desfazem ao sabor de casos individuais e conveniências correspondentes. A falta de vergonha, neste caso, revela-se tão flagrante que só se o País estivesse completamente inerte uma tal coisa poderia acontecer.
Apesar de o País se parecer, cada vez mais, com um enorme lamaçal, creio que a indiferença dos cidadãos tem limites. A verdade é que Portugal enfrenta uma crise gravíssima, das mais graves da sua História, com a economia de rastos, o desemprego a níveis altíssimos (seguramente no próximo ano bem acima dos dez por cento) e o défice a atingir proporções astronómicas. Caminhamos alegremente para a bancarrota, com o governador do Banco de Portugal a dizer que um aumento de impostos se tornou inevitável e o ministro das Finanças a negar terminantemente tal possibilidade, como se amanhã fossemos novamente ter eleições e, portanto, a campanha eleitoral estivesse em pleno andamento. Claramente o que se passa é que o Governo está sem soluções e navega à vista. O primeiro-ministro, sempre tão seguro das suas convicções e determinado na acção, não tem remédios para aplicar. Está sem soluções e, mais grave, está com a sua credibilidade profundamente abalada. Este caso das escutas do dito ‘Face Oculta’, a juntar a situações que tantas dúvidas têm deixado por esclarecer, como o Freeport, a Cova da Beira, os projectos das casas da Covilhã e o diploma da licenciatura, por exemplo, enfraquecem-no a todos os níveis, diminuindo a sua autoridade e reduzindo a sua margem de manobra aos olhos de todos. São assuntos a mais para a nebulosidade que se abateu sobre ele. Para o vulgar cidadão a sensação que fica é a de que alguma coisa se quer ocultar. Não há nada pior para um primeiro-ministro, que precisa de ter a confiança do País, do que viver envolto numa nuvem de interrogações sobre a sua idoneidade e o seu próprio carácter. Independentemente do que o presidente do Supremo Tribunal possa decidir ou o procurador-geral da República despachar, o País precisa de perceber, de uma vez por todas, o que há de tão extraordinário nas gravações que reproduzem as escutas a Armando Vara que levou dois magistrados de Aveiro, independentes entre si, a considerarem a hipótese da existência de matéria criminal em afirmações do chefe do governo. Não sou adepto da devassa da vida das pessoas, como se vivêssemos num mundo bigbrotheriano, mas já se tornou claro que nos encontramos perante um caso sério em que a honestidade do primeiro-ministro constitui tema de falatório generalizado. O rastilho foi ateado e a maneira como os mais destacados agentes da Justiça actuaram lançou-lhe gasolina para cima. Incompetência, falta de jeito ou o que lhe quiserem chamar, isso agora interessa pouco. O que é facto é que o primeiro-ministro, com as suspeitas levantadas em relação a si, deveria ser o mais interessado em ver tudo esclarecido. Frontal e abertamente, em abono do seu nome e do seu carácter, sem se refugiar no formalismo de dispositivos jurídicos. Num outro país qualquer, em que a democracia não viva atolada em compadrios e em que todos os cidadãos sejam, afinal, iguais perante a lei, muito provavelmente, estaria em curso um processo de averiguações conducente ao apuramento da verdade. Quem não se recorda do que aconteceu a Richard Nixon, por sinal, também a partir de umas escutas que se revelaram fatais para ele? Quem não se recorda do que aconteceu com Bill Clinton, apesar da hipocrisia que esteve por detrás do inquérito que se viu obrigado a enfrentar? Quem não se recorda do caso de um governador de Estado, nos EUA, afastado recentemente do cargo? Por muito que possa ser criticada, a democracia americana está longe de ser frágil. Só se fortalece com as dinâmicas que gera e com a transparência na fiscalização dos actos e comportamentos dos agentes políticos que o povo elege. Não vejo, por isso, o que se perderia se, em Portugal, se adoptassem corajosamente práticas semelhantes. Todos ficaríamos a ganhar. A democracia conquistaria, certamente, outra solidez e maturidade. A relação entre eleitores e eleitos seria mais genuína e confiante. Talvez até se conseguisse que os cidadãos não se demitissem da democracia. Como a filha daquela senhora que mencionei no início deste texto, que nem se deu ao trabalho de ir votar...
José Eduardo Moniz,
Ex-Director-Geral da TVI
Cumprimentos
Luiz Pinto

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