segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O ABORTO ORTOGRÁFICO


E enquanto em Portugal tanto iluminado quer mandar prender o Graça Moura, no Brasil há quem ponha os pontos nos iis no negócio do Acordo
Tantas Páginas: O que acha do acordo ortográfico? Acha mesmo que, como dizem os editores portugueses (e muitos intelectuais), o acordo foi uma gigantesca maquinação brasileira para permitir que os livros brasileiros entrem livremente no mercado português e no africano, acabando com a indústria portuguesa do livro?
Paulo Franchetti: O acordo ortográfico é um aleijão. Linguisticamente malfeito, politicamente mal pensado, socialmente mal justificado e finalmente mal implementado.
Foi conduzido, aqui no Brasil, de modo palaciano: a universidade não foi consultada, nem teve participação nos debates (se é que houve debates além dos que talvez ocorram durante o chá da tarde na Academia Brasileira de Letras), e o governo apressadamente o impôs como lei, fazendo com que um acordo para unificar a ortografia vigorasse apenas aqui, antes de vigorar em Portugal.
O resultado foi uma norma cheia de buracos e defeitos, de eficácia duvidosa. Não sei a quem o acordo interessa de fato. A ortografia brasileira não será igual à portuguesa.
Nem mesmo, agora, a ortografia em cada um dos países será unificada, pois a possibilidade de grafias duplas permite inclusive a construção de híbridos. E se os livros brasileiros não entram em Portugal (e vice-versa) não é por conta da ortografia, mas de barreiras burocráticas e problemas de câmbio que tornam os livros ainda mais caros do que já são no país de origem. E duvido que a ortografia seja uma barreira comercial maior do que a sintaxe e o ai-meu-deus da colocação pronominal.
Mas o acordo interessa, é claro, a gente poderosa. Ou não teria sido implementado contra tudo e todos.
No Brasil, creio que sobretudo interessa às grandes editoras que publicam dicionários e livros de referência, bem como didáticos.
Se cada casa brasileira que tem um exemplar do Houaiss, por exemplo, adquirir um novo, dada a obsolescência do que possui, não há dúvida que haverá benefícios comerciais para a editora e para a Fundação Houaiss – Antonio Houaiss, como se sabe, foi um dos idealizadores e o maior negociador do acordo.
O mesmo vale para os autores de gramáticas e livros didáticos – entre os quais se encontram também outros entusiastas da nova ortografia.
E não é de espantar que tenham sido justamente esses – e não os linguistas e filólogos vinculados à universidade – os que elaboraram o texto e os termos do acordo.
Nem vale a pena referir mais uma vez o custo social de tal negócio: treinamento de docentes, obsolescência súbita de material didático adquirido pelas famílias, adequação de programas de computador, cursos necessários para aprender as abstrusas regras do hífen e outras miuçalhas.
De meu ponto de vista, o acordo só interessa a uns poucos e nada à nação brasileira, como um todo.
Já Portugal deu uma prova inequívoca de fraqueza ao se submeter ao interesse localista brasileiro, apesar da oposição muito forte de notáveis intelectuais, que, muito mais do que aqui, argumentaram com brilho contra o texto e os objetivos (ou falta de objetivos legítimos) do acordo.
(do editorial de 09 de Fevereiro do Jornal de Angola, um dos países que não subscreveu o AO):
«O português falado em Angola tem características específicas e varia de província para província. Tem uma beleza única e uma riqueza inestimável para os angolanos mas também para todos os falantes. Tal como o português que é falado no Alentejo, em Salvador da Baía ou em Inhambane tem características únicas. Todos devemos preservar essas diferenças e dá-las a conhecer no espaço da CPLP. A escrita é “contaminada” pela linguagem coloquial, mas as regras gramaticais, não. Se o étimo latino impõe uma grafia, não é aceitável que através de um qualquer acordo ela seja simplesmente ignorada. Nada o justifica. Se queremos que o português seja uma língua de trabalho na ONU, devemos, antes do mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das palavras.»





Paulo Franchetti é professor titular do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
É mestre em Teoria Literária pela Unicamp (1981), doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (1992) e Livre-Docente pela Unicamp (1999). Desde 2004 é Professor Titular.
Atua na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, Literatura Brasileira dos séculos XIX e XX e Literatura Portuguesa do século XIX.
Desde 2002, dirige a Editora da Unicamp, cujo Conselho Editorial preside.

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