O Silva das vacas
de Barcelos, with love...
Algumas das reminiscências da minha escola primária têm a ver com
vacas. Porque a D.ª Albertina, a professora, uma mulher escalavrada e
seca, mais mirrada que uva-passa, tinha um inexplicável fascínio por
vacas. Primavera e vacas. De forma que, ora mandava fazer redacções
sobre a primavera, ora se fixava na temática da vaca. A vaca era,
assim, um assunto predilecto e de desenvolvimento obrigatório, o que,
pela sua recorrência, se tornava insuportavelmente repetitivo. Um dia,
o Zeca da Maria "gorda", farto de escrever que a vaca era um mamífero
vertebrado, quadrúpede ruminante e muito amigo do homem a quem ajudava
no trabalho e a quem fornecia leite e carne, blá, blá, blá, decidiu,
num verdadeiro impulso de rebelião criativa, explicar a coisa de outra
forma. E, se bem me lembro ainda, escreveu mais ou menos isto:
"A vaca, tal como alguns homens, tem quatro patas, duas à frente, duas
atrás, duas à direita e duas à esquerda. A vaca é um animal cercado de
pêlos por todos os lados, ao contrário da península que só não é
cercada por um. O rabo da vaca não lhe serve para extrair o leite, mas
para enxotar as moscas e espalhar a bosta. Na cabeça, a vaca tem dois
cornos pequenos e lá dentro tem mioleira, que o meu pai diz que faz
muito bem à inteligência e, por não comer mioleira, é que o padre é
burro como um tamanco. Diz o meu pai e eu concordo, porque, na
doutrina, me obriga a saber umas merdas de que não percebo nada como
as bem-aventuranças. A vaca dá leite por fora e carne por dentro,
embora agora as vacas já não façam tanta falta, porque foi descoberto
o leite em pó. A vaca é um animal triste todo o ano, excepto no dia em
que vai ao boi, disse-me o pai do Valdemar "pauzinho", que é dono do
boi onde vão todas as vacas da freguesia. Um dia perguntei ao meu pai
o que era isso da vaca ir ao boi e levei logo um estalo no focinho. O
meu pai também diz que a mulher do regedor é uma vaca e eu também não
entendi. Mas, escarmentado, já nem lhe perguntei se ela também ia ao
boi."
Foi assim. Escusado será dizer que a D.ª Albertina, pouco dada a
brincadeiras criativas, afinfou no pobre do Zeca um enxerto de porrada
a sério. Mas acabou definitivamente com a vaca como tema de redacção.
Recordei-me desta história da D.ª Albertina e da vaca do Zeca da Maria
"gorda", ao ler que Cavaco Silva, presidente da República desta
vacaria indígena, em visita oficial ao Açores, saiu-se a certa altura
com esta pérola vacum: "Ontem eu reparava no sorriso das vacas,
estavam satisfeitíssimas olhando o pasto que começava a ficar
verdejante"! Este homem, que se deixou rodear, no governo, pelo que
viria a ser a maior corja de gatunos que Portugal politicamente
produziu; este homem, inculto e ignorante, cuja cabeça é comparada
metaforicamente ao sexo dos anjos; este político manhoso que sentiu
necessidade de afirmar publicamente que tem de nascer duas vezes quem
seja mais honesto que ele; este "cagarola" que foi humilhado por João
Jardim e ficou calado; este homem que, desgraçadamente, foi eleito
presidente da República de Portugal, no momento em que a miséria e a
fome grassam pelo país, em que o desemprego se torna incontrolável, em
que os pobres são miseravelmente espoliados a cada dia que passa, este
homem, dizia, não tem mais nada para nos mostrar senão o fascínio pelo
"sorriso das vacas", satisfeitíssimas olhando o pasto que começava a
ficar verdejante"! Satisfeitíssimas, as vacas?! Logo agora, em tempos
de inseminação artificial, em que as desgraçadas já nem sequer dispõem
da felicidade de "ir ao boi", ao menos uma vez cada ano!
Noticiava há dias o Expresso que, há mais ou menos um ano e aquando de
uma visita a uma exploração agrícola no âmbito do Roteiro da
Juventude, Cavaco se confessou "surpreendidíssimo por ver que as
vacas, umas atrás das outras, se encostavam ao robô e se sentiam
deliciadas enquanto ele, durante seis ou sete minutos, realizava a
ordenha"! Como se fosse possível alguma vaca poder sentir-se deliciada
ao passar seis ou sete minutos com um robô a espremer-lhe as tetas!!
Não sei se o fascínio de Cavaco por vacas terá ou não uma explicação
freudiana. É possível. Porque este homem deve julgar-se o capataz de
uma imensa vacaria, metáfora de um país chamado Portugal, onde há
meia-dúzia de "vacas sagradas", essas sim com direito a atendimento
personalizado pelo "boi", enquanto as outras são inexoravelmente
"ordenhadas"! Sugadas sem piedade, até que das tetas não escorra mais
nada e delas não reste senão peles penduradas, mirradas e sem
proveito.
A este "Américo Tomás do século XXI" chamou um dia João Jardim, o "sr.
Silva". Depreciativamente, conforme entendimento generalizado. Creio
que não. Porque este homem deveria ser simplesmente "o Silva". O Silva
das vacas. Presidente da República de Portugal. Desgraçadamente.
Luís Manuel Cunha in Jornal de Barcelos de 05 de Outubro de 2011.