quarta-feira, 19 de março de 2014

ANTÓNIO LOBO ANTUNES- OS PORTUGUESES SÃO UNS INGRATOS!



 
 
 
 


Agora sol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a
vida.

Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda
compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento.

Isto é internacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos, culpamos
logo os governos.

Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós,
a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos.

Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estoico
silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o
senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja da
miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo
ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à
caridade.

O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da
bondade as vezes é hereditário, dúzias deles.

Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos,
reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns
Cristos, que pecado feio, a ingratidão.

O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor
Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura
maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o
nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em
tribunal.
Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de
respeito.


Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto,
com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver:
- Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro
- Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima
- Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo
que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa
interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores,
que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro,
espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a
bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no
coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores,
aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade.

As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem,
penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de
enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas,
ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas
passaremos semdificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos
abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência
deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente. Dá-me vontade? Ajoelho à
sua frente  indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos.
Vale e Azevedo para os Jerónimos, já!
Loureiro para o Panteão já!
Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já!
Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia.
Para a Batalha.






Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de
pacotilha com que os livros de História nos enganaram. Que o Dia de Camões
passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido das proporções, haja
espírito de medida, haja respeito.
Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de
perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha
contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos como
provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda
perseguição pessoal com fins inconfessáveis.

Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de
onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair.

Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar D. José que, aliás, era
um pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de
Pombal, esse tirano. Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos. Acabem com
as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem de pecar.

Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis
mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho.

Agradeçam a Linha Branca.

Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar.

Abaixo o Bem-Estar.
Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o
peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas
generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de
cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas
podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das
mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval.
Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e
vocês cartazes, cortejos, berros. Proíbam-se os lamentos injustos.

Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e,
enquanto vender o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a
Academia Francesa.
Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os
ex-ministros a tomarem conta disto.
Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar?

O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não
haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda
sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os
processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de
prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos
uns aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação,
felizes.

António Lobo Antunes



 
 

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