sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O ROUBO DO PRESENTE-TEXTO DO FILÓSOFO JOSÉ GIL

No passado dia 20 de dezembro de 2012, a revista Visão publicou o artigo de
opinião, da autoria do filósofo José Gil, intitulado "O roubo do presente"
que se transcreve de seguida.****

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"Nunca uma situação se desenhou assim para o povo português: não ter
futuro, não ter perspetivas de vida social, cultural, económica, e não ter
passado porque nem as competências nem a experiência adquiridas contam já
para construir uma vida. Se perdemos o tempo da formação e o da esperança
foi porque fomos desapossados do nosso presente. Temos apenas, em nós e
diante de nós, um buraco negro.****

O «empobrecimento» significa não ter aonde construir um fio de vida, porque
se nos tirou o solo do presente que sustenta a existência. O passado de
nada serve e o futuro entupiu.****

O poder destrói o presente individual e coletivo de duas maneiras:
sobrecarregando o sujeito de trabalho, de tarefas inadiáveis, preenchendo
totalmente o tempo diário com obrigações laborais; ou retirando-lhe todo o
trabalho, a capacidade de iniciativa, a possibilidade de investir,
empreender, criar. Esmagando-o com horários de trabalho sobre-humanos ou
reduzindo a zero o seu trabalho.****

O Governo utiliza as duas maneiras com a sua política de austeridade
obsessiva: por exemplo, mata os professores com horas suplementares,
imperativos burocráticos excessivos e incessantes: stresse, depressões,
patologias *border-/ine* enchem os gabinetes dos psiquiatras que os
acolhem. É o massacre dos professores. Em exemplo contrário, com os
aumentos de impostos, do desemprego, das falências, a política do Governo
rouba o presente de trabalho (e de vida) aos portugueses (sobretudo jovens).
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O presente não é uma dimensão abstrata do tempo, mas o que permite a
consistência do movimento no fluir da vida. O que permite o encontro e a
intensificação das forças vivas do passado e do futuro - para que possam
irradiar no presente em múltiplas direções. Tiraram-nos os meios desse
encontro, desapossaram-nos do que torna possível a afirmação da nossa
presença no presente do espaço público.****

Atualmente, as pessoas escondem-se, exilam-se, desaparecem enquanto seres
sociais. O empobrecimento sistemático da sociedade está a produzir uma
estranha atomização da população: não é já o «cada um por si», porque nada
existe no horizonte do «por si». A sociabilidade esboroa-se aceleradamente,
as famílias dispersam-se, fecham-se em si, e para o português o «outro»
deixou de povoar os seus sonhos - porque a textura de que são feitos os
sonhos está a esfarrapar-se. Não há tempo (real e mental) para o convivio.
A solidariedade efetiva não chega para retecer o laço social perdido. O
Governo não só está a desmantelar o Estado social, como está a destruir a
sociedade civil.****

Um fenómeno, propriamente terrível, está a formar-se: enquanto o buraco
negro do presente engole vidas e se quebram os laços que nos ligam às
coisas e aos seres, estes continuam lá, os prédios, os carros, as
instituições, a sociedade. Apenas as correntes de vida que a eles nos uniam
se romperam. Não pertenço já a esse mundo que permanece, mas sem uma parte
de mim. O português foi expulso do seu próprio espaço continuando,
paradoxalmente, a ocupá-lo. Como um zombie: deixei de ter substância, vida,
estou no limite das minhas forças - em vias de me transformar num ser
espetral. Sou dois: o que cumpre as ordens automaticamente e o que busca
ainda uma réstia de vida para os seus, para os filhos, para si.****

Sem presente, os portugueses estão a tornar-se os fantasmas de si mesmos, à
procura de reaver a pura vida biológica ameaçada, de que se ausentou toda a
dimensão espiritual. É a maior humilhação, a fantomatização em massa do
povo português. *Este Governo transforma-nos em espantalhos, humilha-nos,
paralisa-nos, desapropria­-nos do nosso poder de ação.* É este que devemos,
antes de tudo, recuperar, se queremos conquistar a nossa potência própria e
o nosso país."****

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