UM LIVRO PARA AS SUAS FÉRIAS!
TAMBWE-A UNHA DO LEÃO
de antónio oliveira e castro
- uma edição GRADIVA
ENCOMENDE DIRECTAMENTE, SEM PORTES, EM
www.Gradivaencomendas@gradiva.mail.pt%3C/div
OU COMPRE NA SUA LIVRARIA
.................................................
Sinopse
De Lisboa a Luanda, seguindo por Paris e por bases aéreas bem guardadas na Rússia e na África do Sul, é uma longa viagem sacudida por geografias contrastantes e pelos solavancos da descolonização e do fim da Guerra Fria. Tambwe – A Unha do Leão faz-se disso e de muito mais. É também o percurso interior de Eugénio, à procura da sua infância e da sua razão de ser numa Angola atormentada pela guerra.
Com uma escrita torrencial e opulenta, o autor descola volta e meia da realidade palpável, circunscrita pelo tempo e pelo espaço, e parte para um universo onírico e simbólico, verdadeiro paraíso perdido, porventura para sempre.
Romance de vida e de morte, só uma partitura de Brahms parece restar como energia redentora quando, na noite tropical, se abrem as portas da prisão de Luanda.
(Pedro Vieira)
(EXCERTO DO ROMANCE TAMBWE-A UNHA DO LEÃO)
"Com a mão trémula, Hendrik Smuts, ou talvez Eugénio, quem sabe, tão enigmáticos e imprevisíveis são os desígnios da alma daqueles que vestem a razão de diferentes personagens, abriu cautelosamente a porta da cave. Como um menino travesso sabia que desobedecia a Le Renard, que desafiava a disciplina impressa pelos séculos na atmosfera da velha casa; sabia que comprometia o rigor áspero da curibeca escondida sob a imponência austera, quase aristocrática, da vetusta habitação; sabia que as regras e as leis são fundamentais à sobrevivência e que ao ignorá-las desafiava o destino, punha em causa o propósito que o tornara um clandestino; sabia também que a morte dos desaparecidos é indecifrável, tão secretamente ínfimos são os sinais que o identificam, tão hábil é a mão assassina, tão feroz a razão que determina, tão frágil o argumento do justiçado. A partir do momento em que ultrapassasse as ombreiras da fronteira escondida por detrás da fresta, sabia-se indefeso; a curiosidade arrastava-o na esteira do irresistível desejo de conhecer o mistério submerso nas catacumbas, ao mesmo tempo que o inquietava com o medo de abrir a encerrada caixa de Pandora.
Impossível resistir. Impossível obedecer à voz conselheira de ficar, resistir ao desafio de partir; quando a razão se reparte pelos demónios que habitam os indecisos, apenas resta o instinto, a primitiva consciência do perigo por entre o caos da alma. Espreitou. À sua frente abria-se uma rampa pintada de um tom amarelo desmaiado.
Vinda das profundezas escondidas, uma luz esmaecida tentava romper a lugubridade do corredor baixo e estreito. Hendrik Smuts afogueou-se de excitação, o seu sexto sentido latejando de lubricidade. Sufocado com o cheiro nauseabundo que uma lufada de ar húmido e gelado fez subir até si, apenas hesitou um instante, momento insuficiente para o fazer desistir. Descendo em caracol, o caminho nada revelava e tudo prometia. O tempero do sobressalto fez o coração de Eugénio disparar. Escutava-lhe o bater, a palpitação forte sem conseguir distinguir o medo da euforia, a ansiedade da excitação. Seria uma descida ao paraíso ou aos infernos? Com a cautela dos timoratos, sopesando o valor dos ruídos, pequenos sinais de uma realidade calada, avançou pé ante pé, mansamente, como que querendo aplacar iras adormecidas. Rodou cada vez mais fundo, até ficar tonto. À medida que os sons da superfície, vindos da cidade e da casa, desapareciam, abafados pelas compactas toneladas de terra e rocha, invadia-o uma sensação de surdez.
Parou, atento. Seria sensato prosseguir? E se Le Renard regressasse e o apanhasse, encurralado, que fim lhe daria? Certamente que o perdão não fazia parte do seu código ético, os princípios filosóficos que davam sentido aos seus objectivos de homem obstinado não admitiam o desnorte que a misericórdia provoca. Hesitava de novo quando, sob o silêncio espesso que dolorosamente o envolvia, julgou escutar algo parecido com o ronronar de um gato.
Caminhar era o destino dos párias, fugir ao desprezo o antídoto para a loucura, revelar os segredos dos outros uma arma letal e cobarde no combate sem tréguas entre predadores da mesma alcateia. Crente que breve chegaria ao centro da terra, que breve escutaria o encantatório som do magma a borbulhar, que breve sentiria no rosto o calor da rocha líquida, inquieta pela servidão a que o fogo a obrigava há séculos, prosseguiu a demanda. Provavelmente, ao dobrar da próxima curva, esquina de um instante qualquer, cairia no cadinho onde se cozinhavam todas as emoções daquela casa, onde se gerava a energia da sua alma maléfica. E assim aconteceu . Apesar de aguardar o momento não deixou de se surpreender primeiro, para se assustar depois.
Encontrava-se num enorme salão escavado na rocha húmida. Do tecto, suspensas a distâncias precisas, brilhavam pequenas lâmpadas, uma luz amarelada projectava sombras imprecisas sobre o solo escorregadio. A cadência das gotas pingando, enchia o espaço de pequenos e insubmissos sons. Por todo o lado, envoltas em plásticos, havia perigosas quantidades de armas das mais variadas espécies e calibres; caixotes de munições, morteiros, mísseis SAM.
Inacreditável! Sob o solo de Paris, uma das capitais do mundo, ali bem próximo do Sena, havia um enorme arsenal, um insuspeito paiol, escondidos sob a aparente bonomia de uma velha casa. Hendrike Smuts quedou-se boquiaberto. Esperava tudo, qualquer outro mistério, qualquer outra revelação, embora, naquele momento não conseguisse precisar qual, menos deparar-se com uma catacumba a abarrotar de sofisticado material de guerra.
A que se destinaria? Que guerra estaria a ser preparada, que violências seriam cometidas? Onde e quando a angústia e o medo se tornariam companheiros das noites dos surpreendidos cidadãos? Seria em nome do projecto de uma Nova Europa com velhos métodos? Uma Europa liberta de emigrantes, líder da acção política e do monopólio dos recursos energéticos, advogada da intolerância, defensora dos interesses únicos de uma civilização que começara com os gregos a estruturar-se definitivamente, como tão entusiasticamente defendia Le Renard, ou, todas aquelas máquinas de morte estariam apenas ao serviço de milionárias e obscuras guerras?
Impressionado, voltou a sentir o odor a sangue, simultaneamente repugnante e fascinante, a libertar-se das paredes. Incapaz de reagir, tão grande era a surpresa pelo que via, deixou-se ficar absorto, o espírito prisioneiro de um novelo de conjecturas, no meio da sala. Sem querer, olhou as mãos, fixou os dedos. Sob o matiz amarelado que se desprendia do tecto tinham a cor da morte, a forma adunca de um matusalém.
Entretido que estava, não deu pela aproximação silenciosa da real besta. A juba negra balouçava ao ritmo da passada musculada, extraordinariamente elegante e poderosa; o corpo, coberto por uma pelagem brilhante, deixava adivinhar a agitação que lhe percorria os centros nervosos. Excitada, abria e fechava as garras, num movimento de sedutora impaciência. Alheio à aproximação silenciosa, própria de um caçador que tenta abeirar-se da vítima sem a espantar, Hendrik Smuts apenas suspeitou do perigo pela tensão que se apoderou do rosto de Eugénio, transfigurando-o de tal modo que o corpo, tremendo com a sezão, irradiava uma luz pálida. Eugénio e Smuts despertaram do transe no instante em que uma língua áspera, cortante como centenas de pequenas lâminas, lhes feriu as mãos.
Um urro, arrepiante como um cataclismo, arrebatador como imprevista paixão, chamou a realidade àquela gruta cúmplice de sinistras demências, templo de execráveis políticas, cemitério de velhas esperanças. Frente a frente estavam o homem e a besta. Um, acometido de arrepios e suores, o leão da Abissínia, feliz com o encontro, agitando a cauda com a brusquidão do chicote. Como habitualmente, quando frente ao perigo, Eugénio foi inconscientemente possuído pelos seus poderes. Num breve instante, desmaterializou-se, adquirindo a leveza da aragem, a subtileza do pensamento, a cor da ausência. O romântico e o mercenário de estranho nome eram agora um ser único em cautelosa retirada, em silenciosa fuga, aguardando que o tempo regressasse ao passado, a atmosfera se libertasse da densidade do medo, a humidade que escorria das paredes secasse, o hálito a sangue o não perseguisse.
Sem comentários:
Enviar um comentário