sexta-feira, 4 de maio de 2012

OS VALORES NO DIÁLOGO EUROPA-ÁFRICA (PARTE 2)


Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais

XXV CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE LISBOA

A EUROPA E ÁFRICA NUM MUNDO MULTIPOLAR

OS VALORES NO DIÁLOGO EUROPA-ÁFRICA

(CONTINUAÇÃO DO TEXTO PUBLICADO EM 2-05-2012)



Outro exemplo que mostra a importância de se conhecer a percepção dos africanos no relacionamento com os europeus foi o diferendo entre Angola e a França por causa do negócio de armas nos anos 90. Muitos africanos exultaram com a forma como o Presidente Eduardo dos Santos protestou e o embaixador francês foi destratado em Luanda e pensou-se que os franceses jamais esqueceriam tal afronta. Passados poucos anos, um enviado do Presidente Sarkozy disse em Luanda no mês passado que foram “removidas as barreiras” – subentende-se judiciais – que dificultaram as relações entre os dois países. Não se conhece o papel das empresas petrolíferas nesse caso, mas foi fácil entender que, afinal, o poder judicial francês não é assim tão independente do executivo.

Alguém afirma que há, por parte dos africanos, uma deliberada confusão entre interesses e valores e que os europeus estão cansados disso e indignam-se tanto com os governos africanos como com os seus próprios governos. Acontece é que tais indignações são muito particularizadas. Conheço casos em que académicos e “opinion makers” mudam de posição – tornam-se mais “tolerantes” – quando passam a integrar governos europeus ou a trabalhar em empresas com interesses em países “violadores”. A forma como alguns jornais portugueses criticam o governo angolano é considerada por muitos angolanos como uma retaliação pelo facto dos seus proprietários verem fechadas portas para negócios em Angola. E cabe aqui lembrar uma frase de Jomo Kenyata, primeiro presidente do Kenya, considerado na altura um “moderado”, quando dizia que os europeus chegaram a África com a bíblia e encontraram os africanos com a terra. Depois os africanos ficaram com a bíblia e os europeus com a terra. Penso que se trata de uma boa metáfora sobre valores e interesses.

Estes factos podem ser simbolicamente associados à reacção de Chavez ao “porquê no te callas?” do Rei de Espanha. Eles mostram, como diz o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, que estamos a entrar num novo período histórico – o período pós-colonial – teorizado por Gandhi, Fanon e Amílcar Cabral, entre outros, que poderá ser caracterizado por uma afirmação mais vigorosa na vida internacional por parte de países outrora colonizados. Dir-se-á que isto acontece por causa do petróleo. Pode ser parcialmente verdade, mas isso só mostra que o que está em causa é exactamente uma relação de poderes. A minha experiência de trabalho com comunidades rurais ensinou-me que quando estas ganham capacidades surgem tensões e conflitos com as organizações que as ajudam a ganhar tais capacidades. A comunicação social “universal” nem sempre escolhe como alvo preferencial os violadores dos direitos humanos, mas aqueles que ousam dizer não ao “diktat” – independentemente das suas razões e motivações. E estes só podem fazê-lo porque conseguem poder – neste caso proveniente do petróleo. Se assim não fosse, a denúncia sobre a violação dos direitos humanos na Etiópia seria provavelmente tão ou mais vigorosa do que no Zimbabwe, como nos faz recordar Berham Nega, Presidente da Câmara de Addis Abeba eleito em 2005 mas que não exerce o seu mandato por ter sido preso logo a seguir e enviado para o exílio há poucos meses. Como a Etiópia não tem petróleo ou outros recursos naturais de significado apetecíveis, aparece noutra escala das preocupações, tanto dos empresários e governantes europeus, como dos media e dos defensores dos direitos humanos, estes também muitas vezes acusados de defenderem os interesses dos governos dos seus países.

A percepção dos africanos, insisto, que entendo deve ser apreendida pelos europeus, tem outras dimensões. Os media europeus raramente falam dos sucessos de África, preferindo dar relevância apenas aos fracassos como se se tratasse de um destino trágico. O escritor angolano José Eduardo Agualusa refere isso quando ironiza com a frase “saímos de lá e vejam no que aquilo deu”, o que é retomado pelo também angolano antropólogo Ruy Duarte de Carvalho – que de modo idêntico a Agualusa está longe de ser um apoiante do regime – quando afirma que “não nos perdoam o termos sobrevivido”. É verdade que os jornais se vendem com notícias sobre desgraças – mas eu estou a falar dos “opinion makers”. O continente africano conheceu nos últimos cinco anos uma taxa de crescimento de cerca de 5%, acima da média mundial. A produção agrícola de países como Moçambique, Mali e Burkina Fasso está a atingir níveis assinaláveis. Em cinco anos, a taxa de escolarização na Tanzânia passou de 51% para 91%, graças ao perdão da dívida que teve como contrapartida o encaminhamento de verbas para esse sector. Em Moçambique o mesmo está a acontecer com a saúde. Em Angola o número de crianças no sistema de ensino primário passou de 1,9 milhões em 2002 – quando acabou a guerra – para cerca de 4,6 milhões em 2007, enquanto o número de estudantes universitários subiu de aproximadamente 20 mil para mais de 60 mil no mesmo período. Tudo isso parece ter pouca importância no discurso veiculado pelos “opinion makers” que refiro. Pela primeira vez ao longo de séculos África encontra fora da Europa alternativas – pelo menos aparentes – para o seu desejo de recuperar o tempo perdido. Na China, no Brasil, na Índia e noutros países, parecem surgir respostas talvez mais adequadas aos problemas reais e mais sustentáveis do ponto de vista social e cultural. Os progressos no domínio da democracia e dos direitos humanos são claros em vários países africanos. Em Angola, país que é frequentemente acusado de violação dos direitos humanos – o que todos sabemos ser verdade –, existe hoje o melhor ambiente de respeito pelos direitos humanos que eu conheci durante toda a minha vida, principalmente no que se refere aos cívicos, políticos e culturais. As sociedades civis africanas estão mais vibrantes do que nunca – apesar de alguns teóricos europeus negarem até a possibilidade da sua existência –, são significativos os êxitos desportivos a nível mundial e assiste-se a um “renascimento cultural” do ponto de vista da música, do cinema, da literatura, da arte, do teatro, numa perspectiva de negação da tradição imutável a que alguns teóricos teimam em associar o continente africano, sendo isso entendido também como uma resposta ao “esquecimento” a que a Europa a devotou dada a sua maior preocupação com o leste, por exemplo, pois África representava nos anos 90 apenas um a dois por cento do comércio mundial. Até que chegaram os chineses e os outros.

Voltemos à questão inicial do debate sobre os valores. Até agora, a Europa considera-se uma exportadora dos seus valores, como diz o espanhol Andrés Ortega. Mas se não quiser impor tais valores na ponta das baionetas como o fez no passado – e como os seus considerados mais importantes aliados tentam fazê-lo na actualidade – deve procurar fazê-lo com sabedoria. Em primeiro lugar, há uma questão de credibilidade. Um colega da ADRA dizia-me que há vários indicadores de que os europeus por vezes parecem não acreditar nos seus valores, ainda que procurem impô-los a outros. O modo como vários países europeus lidaram com os tristemente famosos voos da CIA com destino a Guantánamo e outros lugares ou a supressão do habeas corpus na luta contra o terrorismo, especialmente no país que inventou esse direito, afectou seriamente a solidez desses valores. A própria Comissão Europeia não pode ter moral para dar lições de democracia quando faz “consultas” às sociedades civis africanas meramente formais, para obter o aval às suas políticas e quando por vezes deixa de publicar os resultados que lhe são desfavoráveis.

Em segundo lugar, é necessário ter em conta que, ao contrário do que parecia suceder nos anos 90, nada garante estarmos agora perante “uma imparável tendência para o triunfo do tríptico de mercado, democracia e direitos humanos”, como dizia recentemente de forma perspicaz Javier Solana. Se os chamados casos de sucesso de desenvolvimento económico em África – Moçambique, Gana e Botswana, entre outros – eram atribuídos à conjugação de boa governação e respeito pelos direitos humanos, os exemplos da China (com ausência de democracia) e da Rússia (onde o autoritarismo regressa com vigor) produzem algum “fascínio” em países que reivindicam o reconhecimento dos seus sistemas políticos e sociais, das suas culturas e dos seus valores. Outros afirmam, por vezes, que só com o autoritarismo que caracterizava os “colonos”, que impunha disciplina, é possível o progresso. Finalmente, a globalização não tem sido suficientemente inclusiva e está a produzir crescentes desigualdades entre os países, e a ajuda, que deveria sobretudo aumentar as capacidades dos governos, mostra que aquilo que é dado por um lado é retirado por outro, de forma ampliada, através de mecanismos vários, sobretudo de regras comerciais injustas, como bem demonstra o holandês David Sogge nos seus trabalhos.

A propósito do campeonato mundial de futebol de 2006, Kofi Annan, então Secretário- Geral da ONU, dizia que o evento (jogo) causava inveja à sua organização porque nele, entre outras razões, todas as pessoas sabem qual a posição da sua equipa e o que ela fez para lá chegar; analisam ao pormenor o que a sua equipa fez bem ou mal e o que poderia ter feito; todos os actores estão sujeitos rigorosamente às mesmas regras; e sobretudo, porque efectivamente se obtêm resultados. Isto é verdadeiramente sintomático quando provém de um africano que conhece as regras e os valores dominantes.

É preciso, pois, repensar a questão dos valores quando falamos em diálogo. A imposição dos valores europeus, além de preconceituosa, nega valores que os europeus já defenderam e puseram de parte e os africanos ainda preservam. Se a Europa abandonou duas das bandeiras da Revolução Francesa (igualdade e fraternidade) e hoje enaltecem apenas a liberdade e o indivíduo, os africanos valorizam a solidariedade e têm vivências muito condicionadas pelo funcionamento em grupos, pequenos ou alargados, que lhes permitem maximizar a segurança social. É isto que por vezes explica as tais solidariedades consideradas espúrias mas necessárias para a sobrevivência de pessoas e de grupos. Não se pode imaginar que um governante africano possa desprezar as dezenas de pessoas que se alojam em sua casa ou recorrem aos seus favores logo que é nomeado para o cargo. Se o fizesse ele teria muitas dificuldades em se manter nos grupos de que faz parte. Isso explica também alguns consensos considerados estranhos entre os países dentro da União Africana.

África e Europa devem demonstrar o seu compromisso em garantir os direitos humanos (não apenas os direitos cívicos e políticos, mas também os económicos, sociais e culturais) numa perspectiva de combate à pobreza e de luta pelo equilíbrio de género, mas têm de entender que a Estratégia Conjunta não pode ser vista como ponto de partida nem como um fim, mas uma etapa na construção de uma relação de longo prazo, assente num processo de participação efectiva, isto é, que permita um maior equilíbrio de poderes e um diálogo mais horizontal, no respeito pela história, que não começou com a colonização nem tem que ser determinista no sentido da civilização judaico-cristã.

É finalmente necessária uma clarificação de conceitos em relação a realidades muitas vezes mal conhecidas que dizem respeito ao continente africano. Com efeito, são evidentes em muitos países os problemas de má governação, ligados nomeadamente à corrupção e à falta de participação da sociedade civil e de respeito pelos direitos humanos, e isto não pode ser permanentemente explicado pelos líderes africanos com razões ligadas às raízes culturais. Contudo, muitas vezes o que é designado de má governação constitui na realidade uma disfunção resultante da fragilidade das instituições, nomeadamente o modo como foram ou estão a ser construídos os Estados, e do entendimento da democracia. O Estado, tal como se apresenta em África, diz pouco ou nada à maioria dos cidadãos e o modo como foi sugerido ou imposto o modelo de Westminster não viabiliza o funcionamento democrático das instituições, dado que se limita a democracia a um formalismo que exclui a maioria dos cidadãos. Contra o argumento simplista de que se trata de uma questão de “atraso” em relação ao padrão inevitável de modernidade, penso que a questão é bem mais profunda, pois a política de cada Estado tem a ver com o sistema de valores que serve de referência às populações, não sendo de menosprezar, por exemplo, as religiões africanas e as atitudes em relação ao sobrenatural, à superstição e aos antepassados, que perduram e são subalternizados em relação às crenças cristãs. Em Angola, as igrejas cristãs aliaram-se à administração colonial na eliminação de instituições educativas (como o onjango) que utilizavam técnicas de comunicação que hoje são consideradas modernas e universais. As elites africanas têm de saber viver quase simultaneamente em “momentos históricos” diferentes e movimentar-se entre quadros de valores por vezes contraditórios: negociar em Lisboa ou Bruxelas e depois conviver com chefias tradicionais, relações familiares alargadas ou com o peso dos sistemas mágico-religiosos. O português Victor Ângelo, Subsecretário Geral das Nações Unidas e com larga vivência recente em África, tem opiniões semelhantes sobre o assunto e recorda que as relações com a Europa são ainda muito inspiradas em filosofias da época das lutas de libertação nacional, principalmente na África Austral, que representam, apesar de tudo, uma afirmação de identidade e contestação ao poder colonizador que a democracia ainda não fez esquecer.

Há quem compare a situação de Africa com a da Ásia, referindo que este último continente também foi colonizado, mas esquecem-se essas pessoas que, para além da terrível herança do tráfico de escravos, as sociedades africanas e os seus valores foram muito mais dilaceradas pelo colonialismo do que as asiáticas e que as políticas neocolonialistas – algumas perdurando até hoje – e neoliberais quase arruinaram a agricultura da África Subsariana. Neste sentido, é também necessário identificar as causas da má governação ou da ausência de governação e da fragilidade dos Estados, aprendendo a conhecer que as prioridades de uns não são as de outros. Por exemplo, um estudo realizado em Luanda em 2005 por uma organização americana mostrou que as prioridades para Angola identificadas por estrangeiros e por angolanos estavam ordenadas de forma inversa.

Em relação à corrupção, devemos pensar que “o tango é dançado a dois”, embora isso possa parecer um argumento estafado. Um jornalista português escrevia com despudor, tentando justificar o injustificável, que era impossível fazer negócios em Angola sem “gasosa” ou propina. Eu não faço negócios e recuso-me a dar a “gasosa” (propina) aos funcionários do aeroporto de Luanda para que a minha bagagem não seja revistada. Infelizmente, vejo muitos estrangeiros a pagarem exactamente para não serem revistados. Conheço outros casos em que empresários estrangeiros entendem não ser necessário tratar de documentos (incluindo de viaturas) porque estão sempre dispostos a pagar a tal “gasosa”. Se houvesse recusa sistemática por parte dos corruptores, a prática estaria, há muito, abandonada ou esbatida. Tais atitudes podem ser vistas também como o desprezo com que muitos estrangeiros encaram as leis e as instituições angolanas. E não posso deixar o tema “corrupção” sem me referir aos escândalos sucessivos de partidos políticos em países europeus cujos líderes passam durante o dia a mensagem dos valores e de noite fazem tráfico de influências e financiamentos à margem da lei, ou à forma como se (não) trata a questão da pedofilia. Insisto com o que o tal colega meu dizia, é como se certos europeus actuassem sem dar valor aos valores que dizem defender. Sempre que podem, livram-se deles, até das regras de trânsito. Exagero? Talvez, mas são realidades que necessitam de mais atenção.

Um passo importante será virar a página do passado, mas não rasgá-la. Se não deve haver impunidade em relação aos direitos humanos, por exemplo, também não deve haver imposição, pois esta não respeita o outro e não garante sustentabilidade. Ao defenderem a universalidade dos direitos humanos os europeus não podem deixar perceber que se trata de uma imposição neocolonial, mas ajudar os seus aliados africanos a fazer passar a mensagem de acordo com os contextos específicos. Sei que isso é difícil de entender, mas é a minha experiência que me aconselha a dizer isso. E acredito que, encarada como um processo, tal mensagem chegará aos destinatários, os cidadãos africanos em geral, os únicos que poderão efectivamente lutar pela sua defesa de modo continuado e permanente. Mas é necessário bom senso, tempo e paciência.

Termino chamando a atenção para o que o guineense Carlos Lopes, Subsecretário Geral da ONU, dizia no final da Mesa Redonda de 13 de Setembro deste ano organizada pelo Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais. “O diálogo político entre os dois continentes deve ter uma base igualitária de opiniões divergentes sem recurso aos instrumentos da condicionalidade, particularmente no que diz respeito ao lugar dos valores” e não deve limitar-se aos governos, mas alargar-se às sociedades civis, acrescento eu.” Em nenhum caso pode existir uma relação de superioridade segundo a qual uma parte diz à outra, de forma irredutível, quais os valores a respeitar e as condicionalidades do diálogo. Ainda que as posições sobre democracia ou direitos humanos, por exemplo, possam ser coincidentes, elas não devem ser discutidas sob o vínculo da condicionalidade”, pois isso inviabiliza a predisposição para o diálogo. Diria eu, ainda, que o importante é construir valores comuns que sejam consensuais e possam servir de base ao diálogo e à definição de parcerias centradas nos cidadãos. Esta é a recomendação mais importante que eu faria aos participantes da Cimeira EU-África.

Lisboa, 3 de Dezembro de 2007

Fernando Pacheco

ADRA-Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente, Angola

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