quarta-feira, 2 de maio de 2012

OS VALORES NO DIÁLOGO EUROPA-ÁFRICA


Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais

XXV CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE LISBOA

A EUROPA E ÁFRICA NUM MUNDO MULTIPOLAR

OS VALORES NO DIÁLOGO EUROPA-ÁFRICA



Ao aceitar o convite – que desde já agradeço – do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais para apresentar uma comunicação a esta XXV Conferência Internacional de Lisboa, fi-lo com o sentimento de que seria importante participar neste novo diálogo que se pretende construir entre África e Europa. Ao mesmo tempo que saúdo a iniciativa dos seus organizadores, gostaria de esclarecer que a ADRA (Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente) não é um instituto de estudos e muito menos de relações internacionais, mas uma organização da sociedade civil angolana que acredita e procura contribuir para a construção de uma Angola mais justa e solidária, a partir da prática da democracia e do exercício da cidadania, que confiram às pessoas mais capacidades e poderes para definirem os seus destinos e o seu próprio desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a ADRA tem consciência de que a chamada acção no terreno, que tem vindo a praticar, tem de ser complementada com uma outra mais ampla de envolvimento na discussão e definição de políticas públicas a nível nacional e no debate sobre temas estratégicos do relacionamento internacional. Isto justifica, pois, a aceitação do convite e o nosso interesse neste processo, dado que a nossa prática pode contribuir para um debate mais substantivo. Muito do que vou dizer é fruto das reflexões que ao longo dos anos vimos fazendo dentro da organização.

A tendência para a globalização de certos valores parece hoje incontornável e tornou-se quase impossível encontrar no mundo contemporâneo qualquer governo, partido político ou organização que se atreva a não tecer louvores, ainda que hipócritas ou de circunstância, à democracia, ao Estado de direito e ao respeito pelos direitos humanos. Contudo, vários fenómenos políticos, culturais e sociais fazem com que o estabelecimento de valores seja posto em causa em contextos específicos, restando por vezes a tentativa mais modesta de se encorajar a generalização apenas dos que parecem mais consensuais. Aqui reside então a questão essencial: como estabelecer a validade e universalidade dos valores? Quem define esses valores? Podem os valores considerados universais ser aplicados em contextos caracterizados por determinadas especificidades (políticas, culturais, religiosas) ou que correspondam ao que alguns designam por “diferentes momentos históricos”? Existe uma hierarquia de valores? Que tensões e equilíbrios se podem encontrar entre valores e interesses?

Não tenho respostas definitivas para estas questões Para lançar a discussão sobre elas vou, de forma provocatória, fazer recurso ao poderoso instrumento de análise que representa a comunicação social, pois ela reflecte hoje em dia uma forma de “moldar” o pensamento dos cidadãos, ainda quando estes pensem que estão a decidir pela sua própria cabeça.

Ao mesmo tempo que existem hoje largos consensos sobre a importância do pluralismo de ideias, nota-se, com preocupação, um crescente domínio de uma ideia-força que corresponde à democracia liberal e ao neoliberalismo económico numa perspectiva “ocidentalocentrista” e é difundida por todo o mundo graças ao extraordinário poder da comunicação social e da internet. Ainda que com boas excepções, a comunicação social deixou de ser o quarto poder para ser o poder dos interesses económicos de quem a controla. Nos editoriais e artigos de opinião dos jornais portugueses de referência, salvo uma ou outra ideia dissonante, dificilmente se vislumbra o tal pluralismo de ideias. A imprensa norte americana colou-se tanto à Administração Bush que se tornou tão responsável quanto ela pelo envolvimento no Iraque. São apenas dois exemplos.

Noam Chomsky chama a isso “parcialidade sofisticada”. Não posso evitar uma comparação entre o tratamento dado por essa comunicação social a Hugo Chavez e a George Bush para ilustrar essa parcialidade: Chavez foi eleito, apoia os pobres – ainda que se possa considerar que não da forma mais correcta–, não tem presos políticos, faz referendos e aceita – pelo menos por agora – os seus resultados. Mas não mente. Bush, por seu lado, chegou ao poder graças a uma irregularidade eleitoral, fabricou provas para arrastar o mundo para uma guerra extraordinariamente dispendiosa – repetindo agora a abordagem com o Irão –, deu cobertura a processos de corrupção, falsificou informação sempre que isso lhe conveio, usou processos indecorosos – como o caso da denúncia da agente da CIA e o posterior perdão do único condenado do processo judicial que se seguiu – e tem presos em Guantánamo em condições inaceitáveis: sem acusações, sem prazos, sem direitos. Um pode ser demagogo, mas o outro é mentiroso e não cumpre regras e valores que pretende impor a todo o mundo. Contudo, se um extra terrestre chegasse ao nosso planeta e recorresse apenas à comunicação social para conhecer a sua situação, concluiria que Chavez é actualmente o maior perigo para a humanidade.

Há pois, uma notória parcialidade dos media, traduzida numa dualidade de critérios do que é ou não é democrático, ou do que é ou não é politicamente correcto. Não se manda calar Bush, embora haja muita gente com vontade para tal. Mas, lendo a imprensa, dir-se-ia que mandar calar Chavez é não só legítimo como imprescindível. Dir-se-á, agora, depois do referendo, que o povo venezuelano mandou – e bem – calar Chavez. Mas esse, sim, tem todo o direito de o fazer. O rei de Espanha, do ponto de vista ético, não o tem. Não acredito que Juan Carlos mandasse calar, naquela circunstância, um líder europeu. Mas se o fizesse, teria de enfrentar uma fortíssima reacção dos media por desrespeito de regras protocolares e má educação.

Parece-me que o que acabo de dizer deve merecer uma reflexão mais profunda. O diálogo Europa-África é desejável para as duas partes e, assim sendo, é necessário um exercício sério de discussão despido de preconceitos e ressentimentos. Um aspecto importante desse exercício é o entendimento, por parte dos europeus, das percepções dos africanos sobre o equilíbrio do diálogo. Enquanto tal não acontecer, não acredito que o diálogo – nos casos em que venha a ocorrer – possa ser sincero e eficaz. Para os africanos em geral – não falo de oposicionistas que por razões políticas vêm à Europa com discursos de conveniência do agrado da maioria dos “opinion makers” – o diálogo está viciado porque se sentem dependentes da ética, dos valores, da cultura, da inteligência e do poder dos europeus. São estes que fazem as agendas, marcam os ritmos e têm a última palavra no processo de tomada de decisões. Se fossem africanos a definirem a agenda da próxima cimeira, assuntos como a educação, os direitos e a situação das crianças, a saúde e em particular o HIV/SIDA, e a dívida, entre outros, seriam seguramente incluídos. O diálogo e a cimeira são Europa-África e não África-Europa. Isto pode parecer um pormenor para os europeus, mas não é entendido como tal pelos africanos, pois é difícil que eles não vejam aí sinais de um eurocentrismo e de um complexo de superioridade a que estão acostumados.

Na percepção dos africanos os valores que os europeus dizem defender escondem muitas vezes interesses – e creio que seria muito fácil provar isso através de inquéritos de opinião – e a partir daí as generalizações são inevitáveis. As críticas a Mugabe, José Eduardo dos Santos e, já agora, Chavez, nem sempre são apreciadas pelos bons motivos – que os há, sem dúvida – mas porque são dirigidas a líderes africanos (ou não europeus) que ousam dizer “não” aos poderosos da Europa ou do mundo. Os seguidores internos de Mugabe – que os há, é bom não esquecer, pois ele só perdeu as últimas eleições nos centros urbanos e isso é revelador, ainda que se possa acreditar num ambiente de intimidação e desinformação mais forte nas áreas rurais – e seus aliados africanos (designados por “espúrios” por quem não entende ou dá importância às suas motivações) interrogam-se se a actual preocupação com o Zimbabwé é explicada pela violação dos direitos humanos ou, antes, pelo confisco das “white farms” e pelo afrontamento ao poder do Reino Unido. Muitos deles lembram que nos anos 80 teve lugar um terrível massacre de opositores em Matabeleland – sem que isso tivesse merecido a devida condenação –, numa época em que Mugabe foi armado cavaleiro pela Rainha Isabel II e recebeu prémios do Reino Unido e dos Estados Unidos pela sua governação, enquanto os compromissos de Lencaster House sobre a questão da terra permaneciam congelados. Em 1995 vivi durante cerca de dois meses no Zimbabwé e nessa altura a crise já estava anunciada na sequência do Programa de Ajustamento Estrutural imposto pelo Fundo Monetário Internacional, cujo acrónimo (PSPA em inglês) era traduzido ironicamente por “Put Smith in Power Again” por muitos brancos com quem contactei. Eu também pude comprovar com o meu conhecimento de agrónomo as graves injustiças sobre a terra, pois aos pequenos agricultores (negros) estavam reservados os solos de pior qualidade – isso era visível por simples observação. Ainda nos anos 90 era chocante a forma de relacionamento entre os senhores brancos – que viviam em guetos com muros altíssimos – e os seus empregados, não sendo visível qualquer convivência inter-racial fora do mundo do trabalho. Amigos meus zimbabweanos diziam naquela altura que se estava perante um barril de pólvora – que veio a explodir de forma terrível poucos anos mais tarde. Muitos zimbabweanos interrogam-se hoje onde estavam os defensores dos direitos humanos naquela altura e não aceitam as explicações que lhes são dadas para tais ausências. Eu também não consigo compreender nem aceitar que os actuais inimigos de Mugabe estivessem então adormecidos. A aliança espúria, na opinião desses muitos zimbabweanos, existe entre a oposição e os “white farmers” e isso pode explicar os resultados eleitorais a que me referi. A diabolização de Mugabe é sempre feita do ponto de vista jornalístico, e há poucos estudos científicos isentos sobre o assunto. Pessoalmente acho que a governação de Mugabe é altamente condenável e que a actuação “anti-branco” visou atenuar as consequências das suas políticas de protecção das elites negras aos olhos da opinião pública, prática habitual em vários países africanos. Mas, tal como acontece quando se condenam as governações africanas em geral, não se pode esquecer o contexto histórico e as responsabilidades dos europeus no desastre em que se transformou aquilo a que alguém chamou a “Suiça de África” nos anos 80.

Lisboa, 3 de Dezembro de 2007

Fernando Pacheco

ADRA-Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente,
Angola
(A PUBLICAÇÃO DESTE IMPORTANTÍSSIMO TEXTO PROSSEGUE NOS PRÓXIMOS DIAS)

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