segunda-feira, 7 de maio de 2012

DOMINGO DE ANGOLA


DOMINGO DE ANGOLA

Para mim, domingo de Angola é paraíso. É um Céu. Colorido. É moamba de peixe ou caril de galinha de Quilengues. Domingo de Angola não tem rival no mundo. Começa na praia e acaba na sesta. Não tem Sporting-Benfica, nem linha de Sintra, não tem passeio a Vila Franca. Não tem touros, nem Cacilhas, nem caracóis no Ginjal. Domingo de Angola, para mim, é o melhor domingo do mundo que eu conheço – e que já não é nada pequeno, benza-o Deus.
Moamba para mim é um ritual. Tem pirão de fuba de mandioca – que eu sou do Sul, usa-se de milho, mas eu prefiro de mandioca à moda do Norte, à moda de Malanje, tal qual no Uíje – mete farinha de pau e obrigado velha que está uma delícia. Tem de ser comido à sombra de um palmeira ou coqueiro, debaixo de uma mandioqueira ou mangueira quando é no interior. Porque coqueiro só no litoral. É por estas e por outras que eu gosto do domingo em Angola. Domingo de Branco. Domingo de Preto. Domingo de todos, domingo de missa, de padre, de domingo.
A verdadeira moambada, aquela que é feita de galinha tenra, tão tenra que sabe a peito de virgem, a moamba verdadeira, tem de ser do cacho primeiro da palmeira do quintal. O molho será apurado pelo velho cozinheiro, que foi mestre dos pais, dos filhos e dos filhos dos filhos. Tem molho que é de “come e arrebenta e o que sobra vai no mar” como dizia o poeta patrício e mulato Viriato da Cruz, no “Sô Santo”. Moamba verdadeira, repito, só se come duas ou três vezes na vida. É preciso estar-se em estado de graça. Estar-se com Nosso Senhor e com os anjos.
Moamba para mim, é saudade, hoje que estou longe, hoje que estou perto. Estou perto de estar tão longe. Não compreendem leitores? A gente está longe e tem saudades. Antes de adormecer, pela noite, vem a lembrança, da pitangueira do quintal, da Rosa Lavadeira, do amo-seco Canivete que falava “axim” à moda de Viseu, e tudo isso aparece nítido, cada vez mais claro e puro como certas horas da madrugada da Serra do Lépi. A primeira vez que comi moamba, dela me lembro como da primeira vez que beijei mulher, do primeiro desafio de futebol, do primeiro amor nocturno na areia da praia, com mulher de verdade. A primeira moamba, lembra-se como se lembra a primeira ida à escola.
O travo nativo do cacho de déndém, que leva meses a fazer-se, até os frutos terem a tonalidade da queimada. Metade o clarão no céu da noite, a outra metade, escuro, um escuro de breu. Tudo isso o sabor tropical junta naquele fruto, que tem brisa do mar, sol de praia, frescura de casuarina, amor de mulata. O coconote e as influências indianas nadando no molho. Tem jindungo, a moamba genuína, aquela que cheira a sândalo, que escorre do canto da boca, do patrício apaixonado, de olho rútilo e lábio trémulo. Mas a galinha, essa tem de ser de Quilengues, magra e criada no mato, quase sem penas, galinha de sanzala, galinha de preto, que é como quem diz, de pobre. Isto está divinal, velha, eu um dia volto. Se entra a erva-doce, zumba que zumba e farinha de pau, oh, céus, oh, Mãe, isto não é moamba, isto é poesia. Literatura.
Mas tem de ser comida no terreiro da casa de adobe do bairro velho. Tem de ser comida em ritual, na casa de adobe com telhado de zinco da estrada da escola da Liga, ou num dos Muceques de Luanda, por sobre as areias avermelhadas do Prenda ou do Burity.
Depois a altura do peito de mulher na moleza da carne ou do peixe. Se é “roncador”, aka, é peixe da costa e sabe que sabe tão bem. Mas de galinha é melhor. Galinha de Quilengues escanifrada, repito. Galinha de pobre.
Fico por momentos em êxtase, as mãos sobre o estômago, lembrando o terreiro da família Gamboa lá de Luanda onde comi uma coisa dessas uma vez há muitos anos. Num bairro velho de Benguela, eu estarei ainda um dia com meus companheiros dos tempos de eu menino, comendo moamba e bebendo quissângua à sombra do bambu do Edelfride – na casa do Edelfride.
Moamba é riqueza de pobre e fraqueza de rico. Entra em palácios sem pedir licença, com o mesmo à vontade com que se senta nos quintais com sombra de mangueira e entra em terrina de esmalte, prato de esmalte, caneca de esmalte, garfo de alumínio. Velho sonho de poeta, lembrança de castimbala, moambada para mim é saudade e sonho, recordação e batuque, história de amor.
Um dia, quando eu voltar, hei-de comer uma moambada de peixe ou de carne, à sombra de um cajueiro, num Muceque de Luanda, moamba do cacho primeiro da palmeira do quintal, não é velha? Depois de muito beber dormirei a sesta. E hei-de gostar de ouvir um desses rapazes do meu tempo, feito velho de cabelos brancos, recitar baixinho enquanto adormeço, a balada do Viriato:
“… Kitoto e batuque pró povo lá fora champanha, ngaieta tocando lá dentro…
Garganta cantando:
“Come e arrebenta
E o que sobra vai no mar…”
Para mim, domingo de Angola é isso tudo. Um Céu colorido. Uma moamba de peixe. Uma noite de luar.
… não tem Sporting-Benfica, não tem touros, nem caracóis no Ginjal…

Ernesto Lara Filho, in Jornal de Notícias, 1957



Infância perdida



(para o Miau)



Nesse tempo, Edelfride,

Com quatro macutas

A gente comprava

Dois pacotes de ginguba

Na loja do Guimarães.



Nesse tempo, Edelfride,

com meio angolar

a gente comprava

cinco mangas madurinhas

no Mercado de Benguela.



Nesse tempo, Edelfride,

montados em bicicletas

a gente fugia da cidade

e ia prás pescarias

ver as traineiras chegar

ou então

à horta do Lima Gordo

no Cavaco

comer amoras fresquinhas.



Nesse tempo, Miau,

(alcunha que mantiveste no futebol)

nós fazíamos gazeta

da escola coribeca

e íamos os quatro

jogar sueca

debaixo da mandioqueira.



Era no tempo

em que o Saraiva Cambuta batia na mulher

e a gente gostava de ver a negra levar porrada.



Era no tempo

dos dongos da ponte

dos barcos de bimba

dos carrinhos de papelão



Como tudo era bonito nesse tempo, Miau!



Era no tempo do visgo

que a gente punha na figueira brava

para apanhar bicos-de-lacre e seripipis

os passarinhos que bicavam as papaias do Ferreira Pires

que tinha aquele quintalão grande e gostava dos meninos.



Era no tempo dos doces de ginguba com açúcar.



Mais tarde

vieram os passeios noturnos

à Massangarala

e ao Bairro Benfica.

E o Bairro Benfica ao luar

O poeta Aires a cantar

(meu amor da rua onze e seu colar de missangas...)

Tudo era bonito nesse tempo

até o Salão Azul dos Cubanos

e o Lanterna Vermelha - o dancing do Quioche.



Foi então que a vida me levou para longe de ti:

parti para estudar na Europa

mas nunca mais lhe esqueci, Edelfride,

meu companheiro mulato dos bancos de escola

porque tu me ensinaste a fazer bola de meia

cheia de chipipa da mafumeira.

Tu me ensinaste a compreender e a amar

os negros velhos do bairro Benfica

e as negras prostitutas da Massangarala

(lembras-te da Esperança? Oh, como era bonita

[essa mulata...)

Tu me ensinaste onde havia a melhor quissângua

de Benguela:

era no Bairro por detrás do Caminho de Ferro

quando a gente vai na Escola da Liga.

Tu me ensinaste tudo quanto relembro agora

Infância Perdida

sonhos dos tempos de menino.



Tudo isso te devo

companheiro dos bancos de escola

isso

e o aprender a subir

aos tamarineiros

a caçar bituítes com fisga

aprender a cantar num kombaritòkué

o varre das cinzas

do velho Camalundo.

Tudo isso perpassa

me enche de sofrimento.



Diz a tua Mãe

que o menino branco

um dia há-de voltar

cheio de pobreza e de saudade

cheio de sofrimento

quase destruído pela Europa.



Ele há-de voltar

para se sentar à tua mesa

e voltar a comer contigo e com teus irmãos

e meus irmãos

aquela moambada de domingo

com quiabos e gengibre

aquela moambada que nunca mais esqueci

nos longos domingos tristes e invernais da Europa

ou então

aquele calulu

de dona Ema.



Diz a tua Mãe, Edelfride,

que ela ainda me há-de beijar como fazia

quando eu era menino

branco

bem tratado

quando fugia da casa de meus Pais

para ir repartir a minha riqueza

com a vossa pobreza.

Diz tudo isso a toda a gente

que ainda se lembra de mim.

Diz-lhes. Diz-lhes

grita-lhes

aos ouvidos

ao vento que passa

e sopra nas casuarinas da Praia Morena.

Diz aos mulatos e brancos e negros

que foram nossos companheiros de escola

que te escrevo este poema

chorando de saudade

as veias latejando

o coração batendo

de Esperança, de Esperança

porque ela

a Esperança

(como dizia aquele nosso poeta

que anda perdido nos longes da Europa)

está na Esperança, Amigo.



Edelfride, você não chore

saudades do Castimbala

nem lhe escreva

cartas como essa

que são de partir

meu pobre coração.



Nesse tempo, Edelfride,

Infância Perdida

era no tempo dos tamarineiros em flor...

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