"Pequenos sinais de anarquia
Um texto de Clara Ferreira Alves
Os portugueses e os seus brandos costumes duram quanto tempo? O que fará 2011 pela nossa brandura? Nas televisões vemos com excessiva frequência imagens de violência e protesto nas ruas da Europa. Uma greve geral em Atenas que acaba em gás lacrimogéneo e colunas de fumo negro de carros incendiados. Uma revolta estudantil em Londres que acaba com a agressão a Charles e Camilla, sentados do outro lado deste mundo, a caminho de uma gala. No Rolls-Royce ficou a impressão branca de uma mão na carroçaria. Em Dublin, vemos os cartazes e as fogueiras, os berros de um povo obrigado a pagar a fatura dos bancos e da especulação ruinosa. Em Madrid, vemos confrontos entre a polícia e os manifestantes, ou Zapatero a ameaçar com a prisão os controladores de tráfego aéreo. Em Roma, vemos Berlusconi sobreviver mais um dia, enquanto nas ruas o protesto político explode e ergue barricadas e bloqueios. Montras partidas, gritos e greves, cartazes com palavras grossas. A paz social na Europa da austeridade está a acabar.
E em Portugal? Os portugueses ainda não interiorizaram a crise. O consumo desceu mas a circulação dos carros aumentou, como sempre aumenta nesta época, e os restaurantes estão cheios de celebrações natalícias. Os desempregados e os sem-abrigo que engrossam as legiões que dormem nos vãos dos prédios e nos bancos dos jardins, ou debaixo dos viadutos, são os que menos protestam. Num silêncio sem porta-voz, não têm quem os represente, têm apenas quem os ignore ou os ajude. Instituições de solidariedade social não-governamentais e a Igreja Católica, que continua a desenvolver uma ação social.
Porque a Igreja convive de perto com a tragédia da pobreza, e com as situações de desespero e destituição, vai alertando: a revolta social está a crescer, vai piorar, a violência vai aumentar. Os portugueses fazem orelhas moucas aos avisos. Desmantelado pouco a pouco, peça a peça, segundo os preceitos da agenda "europeia", do Estado social restará não se sabe o quê. A teoria do "empreendedorismo" não se aplica aos que não têm alternativas. E os cidadãos continuam a pagar impostos para os serviços de um Estado que vai deixar de os prestar. O sistema não se reconverte de um dia para o outro; pensar que as pessoas aceitarão mansamente o regresso à pobreza da qual saíram nos últimos anos é uma ficção.
A violência vai aumentar. Disto podemos ter a certeza. Não sei se veremos o gás lacrimogéneo e os carros incendiados mas já se notam pequenos sinais de anarquia. Muita gente vem ter comigo (talvez porque tenho um programa de comentário político na televisão, ou porque lêem esta coluna) em lugares públicos: "isto já não vai lá com conversa". Alguns espetam o dedo e dizem em sussurro furibundo: "isto precisa de uma grande reviravolta"; "temos de começar a apanhar esses bandidos desses banqueiros que nos meteram neste sarilho". Falam na "malandragem dos políticos", na "escumalha corrupta que nos anda a roubar desde o 25 de Abril". Nunca se deve argumentar com as massas nem contra este discurso mas o silêncio parece enraivecê-los mais. E continuam: "vocês, jornalistas, é só blá blá blá, mas a conversa não chega". "Isto", asseguram, este charco, precisa de uma pedrada. Umas pedradas nas montras dos bancos, dizem uns, uns políticos na prisão, dizem outros.
O discurso truculento encontra sempre ouvintes que acenam com a cabeça e repetem: isto não vai lá com conversa, andam a perseguir quem trabalha e deixam os malandros à solta. Os malandros estão identificados, têm nomes, e cresce como espuma nas bocas o desejo de agressão física. Aquele do PSD, o outro do PS. O amigo, de X, o amigo de Y. E os banqueiros. Os banqueiros são um alvo coletivo. Ouvem-se nomes de implicados em escândalos. A informação circula por todas as classes sociais.
Nunca, durante os anos de prosperidade, ouvi um discurso semelhante. Nem vi como um ataque destes mobiliza um grupinho de passantes que param, largam o que estavam a fazer e se juntam à festa. A violência social tem um poder de contaminação rapidíssimo. A multidão vai atrás. Num ano Sarajevo era uma cidade cosmopolita e tolerante da Jugoslávia, uma cidade com Jogos Olímpicos de Inverno e uma sociedade que misturava cristãos e muçulmanos, nacionalistas e anarcas, políticos e apolíticos, e no ano seguinte era um ninho de separatismos e ódios. Vizinhos que tinham coexistido uma vida matavam-se uns aos outros; médicos e professores que nunca tinham disparado um tiro convertiam-se em snipers e assassinos. Assim nasceu a Bósnia, no meio do mais rápido desmoronamento de uma sociedade europeia de que há memória. A distância entre a tolerância e a barbárie é curta e a sua superfície raspa-se com um cano de espingarda.
Texto publicado na revista Única de 23 de dezembro de 2010."
Um texto de Clara Ferreira Alves
Os portugueses e os seus brandos costumes duram quanto tempo? O que fará 2011 pela nossa brandura? Nas televisões vemos com excessiva frequência imagens de violência e protesto nas ruas da Europa. Uma greve geral em Atenas que acaba em gás lacrimogéneo e colunas de fumo negro de carros incendiados. Uma revolta estudantil em Londres que acaba com a agressão a Charles e Camilla, sentados do outro lado deste mundo, a caminho de uma gala. No Rolls-Royce ficou a impressão branca de uma mão na carroçaria. Em Dublin, vemos os cartazes e as fogueiras, os berros de um povo obrigado a pagar a fatura dos bancos e da especulação ruinosa. Em Madrid, vemos confrontos entre a polícia e os manifestantes, ou Zapatero a ameaçar com a prisão os controladores de tráfego aéreo. Em Roma, vemos Berlusconi sobreviver mais um dia, enquanto nas ruas o protesto político explode e ergue barricadas e bloqueios. Montras partidas, gritos e greves, cartazes com palavras grossas. A paz social na Europa da austeridade está a acabar.
E em Portugal? Os portugueses ainda não interiorizaram a crise. O consumo desceu mas a circulação dos carros aumentou, como sempre aumenta nesta época, e os restaurantes estão cheios de celebrações natalícias. Os desempregados e os sem-abrigo que engrossam as legiões que dormem nos vãos dos prédios e nos bancos dos jardins, ou debaixo dos viadutos, são os que menos protestam. Num silêncio sem porta-voz, não têm quem os represente, têm apenas quem os ignore ou os ajude. Instituições de solidariedade social não-governamentais e a Igreja Católica, que continua a desenvolver uma ação social.
Porque a Igreja convive de perto com a tragédia da pobreza, e com as situações de desespero e destituição, vai alertando: a revolta social está a crescer, vai piorar, a violência vai aumentar. Os portugueses fazem orelhas moucas aos avisos. Desmantelado pouco a pouco, peça a peça, segundo os preceitos da agenda "europeia", do Estado social restará não se sabe o quê. A teoria do "empreendedorismo" não se aplica aos que não têm alternativas. E os cidadãos continuam a pagar impostos para os serviços de um Estado que vai deixar de os prestar. O sistema não se reconverte de um dia para o outro; pensar que as pessoas aceitarão mansamente o regresso à pobreza da qual saíram nos últimos anos é uma ficção.
A violência vai aumentar. Disto podemos ter a certeza. Não sei se veremos o gás lacrimogéneo e os carros incendiados mas já se notam pequenos sinais de anarquia. Muita gente vem ter comigo (talvez porque tenho um programa de comentário político na televisão, ou porque lêem esta coluna) em lugares públicos: "isto já não vai lá com conversa". Alguns espetam o dedo e dizem em sussurro furibundo: "isto precisa de uma grande reviravolta"; "temos de começar a apanhar esses bandidos desses banqueiros que nos meteram neste sarilho". Falam na "malandragem dos políticos", na "escumalha corrupta que nos anda a roubar desde o 25 de Abril". Nunca se deve argumentar com as massas nem contra este discurso mas o silêncio parece enraivecê-los mais. E continuam: "vocês, jornalistas, é só blá blá blá, mas a conversa não chega". "Isto", asseguram, este charco, precisa de uma pedrada. Umas pedradas nas montras dos bancos, dizem uns, uns políticos na prisão, dizem outros.
O discurso truculento encontra sempre ouvintes que acenam com a cabeça e repetem: isto não vai lá com conversa, andam a perseguir quem trabalha e deixam os malandros à solta. Os malandros estão identificados, têm nomes, e cresce como espuma nas bocas o desejo de agressão física. Aquele do PSD, o outro do PS. O amigo, de X, o amigo de Y. E os banqueiros. Os banqueiros são um alvo coletivo. Ouvem-se nomes de implicados em escândalos. A informação circula por todas as classes sociais.
Nunca, durante os anos de prosperidade, ouvi um discurso semelhante. Nem vi como um ataque destes mobiliza um grupinho de passantes que param, largam o que estavam a fazer e se juntam à festa. A violência social tem um poder de contaminação rapidíssimo. A multidão vai atrás. Num ano Sarajevo era uma cidade cosmopolita e tolerante da Jugoslávia, uma cidade com Jogos Olímpicos de Inverno e uma sociedade que misturava cristãos e muçulmanos, nacionalistas e anarcas, políticos e apolíticos, e no ano seguinte era um ninho de separatismos e ódios. Vizinhos que tinham coexistido uma vida matavam-se uns aos outros; médicos e professores que nunca tinham disparado um tiro convertiam-se em snipers e assassinos. Assim nasceu a Bósnia, no meio do mais rápido desmoronamento de uma sociedade europeia de que há memória. A distância entre a tolerância e a barbárie é curta e a sua superfície raspa-se com um cano de espingarda.
Texto publicado na revista Única de 23 de dezembro de 2010."
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