quarta-feira, 21 de abril de 2010

Artigo de Divaldo Martins, ex-porta voz da Polícia Nacional de Angola

Luanda - Nasci num tempo em que já não havia nem colonos nem guerra
colonial. Havia guerra entre nós, mas colonial já não. A minha
infância foi povoada de relatos e vestígios de morte, a minha
adolescência vivida entre o medo de ir à tropa e a esperança no fim
da guerra. No meio de tudo isso ia à escola e ouvia histórias. O
futuro era uma incógnita, por isso falava-se do passado. De um
passado preenchido de coragem em busca da liberdade. E aos meus
olhos, Agostinho Neto e os seus companheiros eram os heróis da vida
real.
Enquanto ouvia as histórias, tentava colocar-me naquele tempo,
imaginava-me no meio do Rangel ou do Sambizanga com uma catana na
mão, nas reuniões clandestinas do movimento, nas fugas para o
Congo, a vida no maquis, nas matas e nas lutas. Imaginava-me na
escrita camuflada do Luandino, nas músicas do David Zé, e
experimentava o medo, a revolta, a angústia, a raiva também, mas
principalmente a coragem dos que construíram aquelas histórias.
Sentia inveja por não ter vivido naquele tempo para poder ser um
herói como eles foram, porque tinha a certeza que nunca mais
iríamos viver tempos como aqueles, em que homens lutaram para ser
livres.
A guerra colonial acabou sem que eu fizesse um único tiro. A nossa
também terminou, e eu nem numa arma peguei. No meio disso nasceram
outros heróis que um dia as crianças vão ouvir falar nas escolas e
nas ruas. Mas hoje, quando penso na nossa sociedade não consigo
libertar-me da sensação de estar amarrado dentro de mim. É verdade
que posso ir à Benguela de carro, passar pelo Huambo e chegar até
Malange, ainda assim me sinto preso dentro de mim. Todos os dias
tenho de repetir para mim mesmo que sou livre, mas nem o som da
minha própria voz parece o mesmo. Quando falo sobre isso com os
meus amigos, com ex-colegas, com os meus companheiros da vida,
todos concordam e se confessam aprisionados também, mas a seguir
olham em volta e repetem o sussurro medroso da canção do Waldemar
Bastos: «Xê menino, não fala política…», como se não fôssemos ainda
livres. Afinal, somos ou não somos livres?
Vivemos com medo mas, se pensarmos bem, nem sabemos do que tememos
realmente, e acabamos por ter medo de tudo, até dos nossos
pensamentos, das nossas ideias mais brilhantes. Numa sociedade
livre as pessoas não têm de se lembrar todos os dias que o são,
numa sociedade livre a liberdade é uma condição imanente da própria
humanidade, é como o respirar, faz parte de si, e os gestos, os
actos, as atitudes dos seus membros surgem com naturalidade,
exactamente como o respirar. Quando não respiramos morremos, quando
não temos liberdade também.
Há dias, falando sobre isso com uma amiga, que por acaso está a
fazer o curso para a magistratura judicial, ela disse que se sentia
da mesma forma, mas que no nosso país «é preciso ter jogo de
cintura», no fundo ela queria dizer que é preciso continuar a
fingir que somos livres, porque assim pelo menos temos a certeza de
que continuamos vivos, recebemos o salário ou um carro no serviço.
Não cantamos, mas ao menos dançamos, mesmo sem gostar da música. O
melhor é apenas tapar os ouvidos ou fingir que somos surdos.
Fiquei horrorizado. Escandalizado. Aliás, vivo escandalizado,
principalmente quando penso que, se Agostinho Neto e os seus
companheiros usassem o jogo de cintura, provavelmente não
estaríamos ainda independentes, e ao invés de ouvirmos as histórias
do Ngunga e do Pioneiro Ngangula, estaríamos a ler Os Lusíadas e a
cantar Heróis do Mar, invés do Angola Avante da nossa infância. Se
calhar, e ainda bem, Neto e os seus companheiros não sabiam dançar
e preferiram lutar.
Mas a verdade é que no nosso país até a mera intenção de falar se
tornou num acto «insensato» de coragem, pensar hoje é uma afronta,
e por causa disso estamos a construir uma sociedade dos Prós e dos
Contra, onde quem fala subverte o sistema e ameaça a estabilidade,
como se das palavras viesse o mal que todos vêm, como se o silêncio
fosse capaz de corrigir os erros que sabemos, como se o barulho do
nosso grito mudo fosse capaz de abafar as frustrações visíveis em
cada olhar calado.
O falar só assusta numa sociedade onde não há liberdade. Mais do
que assustar, quando não há liberdade, o falar incomoda, e as
pessoas vivem caladas, ou falam o que não pensam. Mas a maioria não
fala, até aqueles que têm a obrigação histórica e moral de o fazer.
Não falam, não porque têm medo de falar, mas porque têm medo de
pensar e não querem correr o risco de falar. Silenciamos o
pensamento e vivemos calados de boca aberta.
Quando vejo isso penso nos heróis do tempo do colono. Acredito que
era exactamente assim que eles se sentiam. Prisioneiros de si.
Basta lembrar de um poema, um único poema, A renúncia impossível,
de Neto, e de todos os lamentos daqueles tempos, para perceber a
tentativa corajosa daquela gente se libertar da prisão que era a
sua vida, resumida a uma mera existência. Uns preferiram morrer,
simplesmente porque é impossível renunciar a liberdade e continuar
vivo.
E quando penso nisso, penso em todos os heróis da liberdade. Para
além de Neto, penso em Martin Luther King, penso em Mandela,
recordo Gandhi, e percebo que apenas penso neles porque todos, e
cada um deles, lutaram pela mesma liberdade. No fundo eles não são
heróis de verdade, são simples homens que recusaram ser animais,
quando a maioria se contentava a imitar a vida de um cão
acorrentado, que ladra e faz piruetas por um pedaço de pão.
Exactamente como Agostinho Neto e os seus companheiros, eles
lutaram pela liberdade. Não a liberdade dos sistemas políticos,
perdida nos meandros das constituições, mas a liberdade da alma, a
liberdade profunda, infinita e ilimitada, a liberdade que faz de
nós gente, a única capaz de revelar a excelência de cada um.
A minha geração, aqueles que não viram a guerra colonial, mas
sentiram o cheiro da morte nas histórias da guerra, que ouviram as
histórias do Agostinho Neto, parece contente com a sua existência,
mas na verdade não está. A minha geração parece que vive para ver a
hora a passar, enquanto inventa um momento, uma festa, um caldo, ou
ficar na esquina da rua a fazer o jogo de cintura, enquanto bebe
uma cerveja e finge que está contente, mas na verdade não está.
Temos apenas medo, e bebemos para afogar os pensamentos, como o
poeta que fumava ópio. Fingimos sorrisos mas vivemos a reclamar
calados. Calados ninguém nos ouve. A minha geração vive calada de
boca aberta, silenciou o pensamento com medo de falar.
Uma sociedade que não pensa, porque tem medo de falar, não produz
ideias. Uma sociedade que não tem ideias, porque não pensa, nunca
atingirá a excelência. Uma sociedade que não permite que os seus
membros falem, impede que os seus membros pensem; impedindo que os
seus membros pensem, impede que eles atinjam a excelência. Uma
sociedade assim nunca irá formar um Barack Obama, um Tony Blair, um
Bill Clinton, uma Angela Merkel, um Seretse Kama, um Durão Barroso,
nem sequer um Cristiano Ronaldo.
É verdade que não são mais tempos de luta, não são mais tempos de
forjar heróis, de andar com catanas no Marçal e no Sambizanga, de
escrever panfletos às escondidas, de pintar paredes com palavras de
ordem, mas também já não são tempos para jogos de cintura. É tempo
de esgrimir ideias, é tempo de aprendermos a ser livres, de
aprendermos a respeitar a liberdade, a nossa e a dos outros, para
permitir que cada um consiga libertar a excelência escondida no seu
medo. Numa sociedade onde as pessoas não se sentem livres não
existe excelência, com excepção da que vem amarrada atrás dos
cargos.
Divaldo Martins,
Super-intendente-chefe, ex-porta-voz da Policia Nacional.

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