sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Rosa Lobato Faria




Aos 77 anos, depois de uma semana de internamento num hospital privado. Foi colaboradora (dizendo poesias) de David Mourão-Ferreira em programas literários da televisão. Autora, entre outros, dosromances Flor do Sal, A Trança de Inês, Romance de Cordélia, OPrenúncio das Águas, ou mais recentemente A Estrela de Gonçalo Enes(ed. Quasi). Publicamos aqui a 'autobiografia' que escreveu para o JL há dois anos.
Autobiografia.
Quando eu era pequena havia um mistério chamado Infância. Nuncatínhamos ouvido falar de coisas aberrantes como educação sexual,política e pedofilia. Vivíamos num mundo mágico de princesasimaginárias, príncipes encantados e animais que falavam. A pior pessoaque conhecíamos era a Bruxa da Branca de Neve. Fazíamos hospitais paraas formigas onde as camas eram folhinhas de oliveira e não comíamos àmesa com os adultos. Isto poupava-nos a conversas enfadonhas eincompreensíveis, a milhas do nosso mundo tão outro, e deixava-noslivres para projectos essenciais, como ir ver oscilar os agriões nosregatos e fazer colares e brincos de cerejas. Baptizávamos as árvores,passeávamos de burro, fabricávamos grinaldas de flores do campo.Fazíamos quadras ao desafio, inventávamos palavras e entoávamosmelodias nunca aprendidas.
Na Infância as escolas ainda não tinham fechado. Ensinavam-nos coisasinúteis como as regras da sintaxe e da ortografia, coisas traumáticascomo sujeitos, predicados e complementos directos, coisas imbecis comoverbos e tabuadas. Tinham a infeliz ideia de nos ensinar a pensar e asurpreendente mania de acreditar que isso era bom.Não batíamos na professora, levávamos-lhe flores.
E depois ainda havia infância para perceber o aroma do suco das maçãstrincadas com dentes novos, um rasto de hortelã nos aventais, aangustia de esperar o nascer do sol sem ter a certeza de que viria(não fosse a ousadia dos pássaros só visíveis na luz indecisa daaurora), a beleza das cantigas límpidas das camponesas, o fulgor daspapoilas. E havia a praia, o mar, as bolas de Berlim. (As bolas deBerlim são uma espécie de ex-libris da Infância e nunca mais na vidahouve fosse o que fosse que nos soubesse tão bem).
Aos quatro anos aprendi a ler; aos seis fazia versos, aos noveensinaram-me inglês e pude alargar o âmbito das minhas leiturasinfantis. Aos treze fui, interna, para o Colégio. Ali havia muitasraparigas que cheiravam a pão, escreviam cartas às escondidas, esonhavam com os filmes que viam nas férias. Tínhamos a certeza de queo Tyrone Power havia de vir buscar-nos, com os seus olhos morenos,depois de nos ter visto fazer uma entrada espampanante no salão debaile onde o Fred Astaire já nos teria escolhido para seu par ideal.
Chamava-se a isto Adolescência, as formas cresciam-nos como asnecessidades do espírito, música, leitura, poesia, para mim sobretudoliteratura, história universal, história de arte, descobrimentos e oCamões a contar aquilo tudo, e as professoras a dizerem, aplica-te,menina, que vais ser escritora.
Eram aulas gloriosas, em que a espuma do mar entrava pela janela, amúsica da poesia medieval ressoava nas paredes cheias de sol, ay eucoitada, como vivo em gran cuidado, e ay flores, se sabedes novas,vai-las lavar alva, e o rio corria entre as carteiras e nelemolhávamos os pés e as almas.
Além de tudo isto, que sorte, ainda havia tremas e acentos graves.Mas também tínhamos a célebre aula de Economia Doméstica de ondesaíamos com a sensação de que a mulher era uma merdinha frágil, semvontade própria, sempre a obedecer ao marido, fraca de espírito quenão de corpo, pois, tendo passado o dia inteiro a esfregar o chão compalha de aço, a espalhar cera, a puxar-lhe o lustro, mal ouvia a chavena porta havia de apresentar-se ao macho milagrosamente fresca,vestida de Doris Day, a mesa posta, o jantarinho rescendente, e nemuma unha partida, nem um cabelo desalinhado, lá-lá-lá, chegaste, meuamor, que felicidade! (A professora era uma solteirona, mais sonhadorado que nós, que sabia todas as receitas do mundo para tirar todas asnódoas do mundo e os melhores truques para arear os tachos de cobreque ninguém tinha na vida real).
Mas o que sabíamos nós da vida real? Aos 17 anos entrei para aFaculdade sem fazer a mínima ideia do que isso fosse. Aos 19 casei-me,ainda completamente em branco (e não me refiro só à cor do vestido).Só seis anos, três filhos e centenas de livros mais tarde é queresolvi arrumar os meus valores como quem arruma um guarda-vestidos.Isto não, isto não se usa, isto não gosto, isto sim, isto seguramente,isto talvez. Os preconceitos foram os primeiros a desandar, assim comotodos os itens que à pergunta porquê só me tinham respondido porquesim, ou, pior, porque sempre foi assim. E eu, tumba, lixo, se semprefoi assim é altura de deixar de ser e começar a abrir caminho àsgerações futuras (ainda não sabia que entre os meus 12 netos secontariam nove mulheres). Ouvi ontem uma jovem a dizer, a revoluçãoque nós fizemos nos últimos anos. Não meu amor: a revolução que NÓSfizemos nos últimos 50 anos. Mas não interessa quem fez o quê. Épreciso é que tenha sido feito. E que seja feito. E eu fiz tudo,quando ainda não era suposto. Quando descobri que ser livre eraacreditar em mim própria, nos meus poucos, mas bons, valores pessoais.
Depois foram as circunstâncias da vida. A alegria de mais um filho,erros, acertos, disparates, generosidades, ingenuidades, tudo muitobom para aprender alguma coisa. Tudo muito bom. Aprender é a palavrachave e dou por mal empregue o dia em que não aprendo nada. Aindaespero ter tempo de aprender muita coisa, agora que decidi que aBíblia é uma metáfora da vida humana e posso glosar essa descobertaaté, praticamente, ao infinito.
Pois é. Eu achava, pobre de mim, que era poetisa. Ainda não sabia queestava só a tirar apontamentos para o que havia de fazer mais tarde. Aganhar intimidade, cumplicidade com as palavras. Também escreviacrónicas e contos e recados à mulher-a-dias. E de repente, aos 63anos, renasci. Cresceu-me uma alma de romancista e vá de escrever dezromances em 12 anos, mais um livro de contos (Os Linhos da Avó) e seteou oito livros infantis. (Esta não é a minha área, mas não sei porquê,pedem-me livros infantis. Ainda não escrevi nenhum que me procurassecomo acontece com os romances para adultos, que vêm de noite ou quandovou no comboio e se me insinuam nos interstícios do cérebro, e meatiram para outra dimensão e me fazem sorrir por dentro o tempo todo eme tornam mais disponível, mais alegre, mais nova).
Isto da idade também tem a sua graça. Por fora, realmente, nota-semuito. Mas eu pouco olho para o espelho e esqueço-me dessa história daimagem. Quando estou em processo criativo sinto-me bonita. É como setivesse luzinhas na cabeça. Há 45 anos, com aquela soberba muitofeminina, costumava dizer que o meu espelho eram os olhos dos homens.Agora são os olhos dos meus leitores, sem distinção de sexo, raça,idade ou religião. É um progresso enorme.
Se isto fosse uma autobiografia teria que dizer que, perto dos 30,comecei a dizer poesia na televisão e pelos 40 e tais pus-me a fazerumas maluqueiras em novelas, séries, etc. Também escrevi algumasdestas coisas e daqui senti-me tentada a escrever para o palco, que éuma das coisas mais consoladoras que existem (outra pessoa diriagratificantes, mas eu, não sei porquê, embirro com essa palavra). Nãohá nada mais bonito do que ver as nossas palavras ganharem vida, esangue, e alma, pela voz e pelo corpo e pela inteligência dos actores.Adoro actores. Mas não me atrevo a fazer teatro porque não aprendi.
Que mais? Ah, as cantigas. Já escrevi mais de mil e 500 e é uma das coisas mais divertidas que me aconteceu. Ouvir a música e perceber oque é que lá vem escrito, porque a melodia, como o vento, tem uma almae é preciso descobrir o que ela esconde. Depois é uma lotaria. Ou mecantam maravilhosamente bem ou tristemente mal. Mas há que arriscar e,no fundo, é só uma cantiga. Irrelevante.
Se isto fosse uma autobiografia teria muitas outras coisas paracontar. Mas não conto. Primeiro, porque não quero. Segundo, porque sóme dão este espaço que, para 75 anos de vida, convenhamos, não é excessivo.Encontramo-nos no meu próximo romance.

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